Peço a Palavra
quinta-feira, outubro 28, 2004
 
Uma janela aberta para o PR
1. Marcelo Rebelo de Sousa deixou de exercer um cargo opinativo num meio de comunicação social. Especulou-se, de imediato, que a cessação daquele espaço crítico poderia ter resultado de influências de agentes governativos e/ou de uma influência exercida pela administração da TVI (que não pretenderia ser prejudicada em certos negócios envolvendo o Governo).

2. Em face da gravidade das afirmações, duas entidades iniciaram inquéritos destinados a apurar a verdade dos factos. A Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) fê-lo de seguida, ordenando a inquirição de todos os envolvidos no caso. Depois, a Assembleia da República fez o mesmo. Simplesmente, entendeu que não seria necessário ouvir todas as partes. Entendeu não ser necessário, por exemplo, obter as impressões que o alegado censurado teria recolhido do caso.

3. No decurso do inquérito decorrido na AACS, o alegado censurado confirmou que «sim, senhor, efectivamente fui censurado porque as minhas críticas incomodavam o Governo e, consequentemente, podia a TVI ser prejudicada».

4. Em circunstâncias normais, compete à Assembleia da República averiguar da veracidade de acusações concretas de desvio de poderes que pairem sobre o Governo -- no limite, de um seu Ministro e do seu Primeiro-Ministro. É uma decorrência impreterível do sistema de cheks and balances: é a própria razão de ser da AR. Uma assembleia de representantes popular não persegue outro desiderato principal senão o de fiscalizar, direccionar e autorizar a acção executiva. Nesta perspectiva, o inquérito aberto pela Assembleia da República não pode deixar de averiguar a totalidade dos factos relevantes, razão pela qual não se pode prescindir da inquirição da alegada vítima de censura.

5. Segundo consta nos meios de comunicação social e de acordo com as declarações proferidas pelo Presidente do Grupo Parlamentar do CDS-PP, partido do Governo, os termos do inquérito em curso na AR não serão alterados; ou seja, nem os agentes governamentais nem a alegada vítima serão inquiridas. Segundo parece, tal não se afigura como necessário.

6. Ora, se se antever do comportamento da maioria da AR que, deliberadamente, não será realizado um inquérito que incorpore factos e meios probatórios que já são do conhecimento público; que se encontra, por esse motivo, em preparação uma decisão necessariamente eivada de autismo; então só resta concluir que a AR se encontra impedida de exercer as suas funções fiscalizadoras da actividade executiva para as quais foi eleita e para as quais está constitucionalmente investida de poderes. E se assim é, no cenário que se ergue neste preciso momento, só resta ao Presidente da República dissolver imediatamente a AR e convocar eleições antecipadas para salvaguardar a legitimidade democrática do regime.

segunda-feira, outubro 25, 2004
 
Casos análogos
Rocco Buttiglione é o nome da mais recente celeuma da política europeia. José Manuel Barroso escolheu-o para se ocupar da política comunitária na área da Justiça. Escolha essa intolerável, de acordo com um coro de críticas: Rocco é católico. Entendem-se como inaceitáveis as opiniões expressas por Buttiglione acerca da homossexualidade e do papel da mulher na sociedade -- que adviriam da sua religiosidade. Mais, entende-se que tais opiniões são repulsivas à luz dos valores maioritários que proliferam no tecido social europeu. E que a sua religiosidade não se coaduna com as tarefas que lhe vão ser atribuídas -- receia-se que tente utilizar os poderes que lhe são conferidos para evangelizar.

Ora, convém esclarecer desde já que este não é um dilema novo. As razões apontadas para obstar ao empossamento de Buttiglione são manifestações da mesma razão que conduziu o Parlamento francês à aprovação da Lei do Véu e que origina o erguimento de obstáculos à adesão da Turquia à UE. E que sustenta a argumentação daqueles que pretendem deixar ao largo do preâmbulo da Constituição Europeia qualquer referência à herança cristã na fundação da Europa -- nem se discutindo, inclusivamente, o contributo das demais religiões abramânicas. Numa palavra: em causa está a contradição existente no nosso mundo europeu entre materialismo secular e crença, contradição essa que já foi apontada, por exemplo, por Akbar S. Ahmed (Pós-Modernismo e Islão).

O que se argumenta é que o projecto europeu é um projecto isento de influências sujeitas a discussão, a divisionismos. É um projecto que se pretende congregador e não representante de um ponto de vista. É por esse motivo que o exercício de funções públicas deve ser dissociado de qualquer código moral -- sobretudo se esse código for oriundo da esfera religiosa. E, do mesmo modo, é por isso que a configuração da própria UE não deve estar relacionada com qualquer legado ou interferência da esfera religiosa.
Nesta perspectiva, aceitar que o projecto europeu está historicamente associado a um legado dessa natureza ou que os agentes políticos envolvidos nesse processo se guiam por esses padrões morais é um retrocesso. Porque tal evento representaria um suposto desvirtuamento do projecto multi-cultural europeu.

É esta a mentira que importa desmascarar. Em primeiro lugar, é uma falsidade histórica. A esfera religiosa teve um papel central na vivência europeia e dos europeus ao longo dos séculos. E constitui um substracto precioso do projecto europeu.
Para além do mais, a argumentação é absurda -- e é absurda porque oculta a verdade. Qualquer indivíduo é um agente moral. Um indivíduo que rejeite um código moral de origem religiosa não irá, consequentemente, actuar cegamente como um autómato. Ele actuará de acordo com outro código moral -- um código moral de índole materialista, onde os vectores de religiosidade não entram. Esse código moral é o do materialismo secular. Simplisticamente e no campo da decisão política, o materialismo secular é um fruto do Iluminismo e do materialismo. É o domínio da tecnocracia, o campo privilegiado do utilitarismo materialista. É esta a verdade que não se diz em voz alta.

Ou seja, o fenómeno a que assistimos não é o da criação de um espaço livre para um exercício asséptico de poderes. O que se quer é substituir um código moral por outro.
A Constituição Europeia, a Turquia, a Lei do Véu e o caso Buttiglione são manifestações de um mundo que se sente pouco à-vontade com a crença. A luta a que assistimos não é, pois, a da defesa do projecto europeu contra investidas de um mundo religioso, velho e regressivo. Assistimos sim à sobrevivência, no espaço europeu, da possibilidade de haver agentes morais que se guiam por códigos religiosos ou não materialistas.

quarta-feira, outubro 20, 2004
 
Inversão de valores

«O ministro da Presidência, Nuno Morais Sarmento, defendeu hoje que deve ser o Governo a definir o modelo de programação da RTP, porque é o Executivo que responde pelas decisões praticadas na televisão pública. "Deve haver uma definição por parte do poder político acerca do modelo de programação do operador de serviço público", afirmou Morais Sarmento [...]. O ministro que tutela a pasta da Comunicação Social lembrou serem "os responsáveis políticos que respondem perante o povo". "Não são os jornalistas nem as administrações que vão responder perante os eleitores" pela informação ou pela programação da estação pública, salientou o ministro. Por isso, disse, é necessário "haver limites à independência" dos operadores públicos sob pena de ser adoptado "um modelo perverso" que exige responsabilidades a quem não toma as decisões."Não tenho direito a mandar, mas tenho direito a ter opinião", sublinhou Morais Sarmento, defendendo que "a RTP ainda tem um longo percurso (a percorrer) a nível dos conteúdos" que transmite».

(in Público)


Em resumo, é o Estado que serve o Governo e não o Governo que serve o Estado. Não fui eu que o disse. Foi o Senhor Ministro.

A confusão estabelecida entre Estado e Governo (corpo político eleitoralmente responsabilizável) e, sobretudo, a confusão reinante acerca de quais os fins a que os bens do Estado devem estar devotados -- de tal ordem que um Ministro defende convictamente que os fins dos bens do Estado devem ser directamente condicionados pela sobrevivência eleitoral do Governo -- são uma clara demonstração da inaptidão deste corpo governativo em conformar-se com as regras democráticas. Não passa um dia sem que fique (ainda mais) demonstrada a carência de legitimidade democrática deste Governo e dos seus actos.


sexta-feira, outubro 15, 2004
 
Falência da legitimidade democrática
1. Um governo democrático conhece duas fontes de legitimação (preferencialmente cumulativas) para o exercício dos poderes públicos: a legitimidade representativa; e a legitimidade de exercício.

2. A legitimidade representativa é a admissibilidade, determinada pelo resultado do voto, de um decisor público tomar decisões que afectam toda a colectividade. Num plano eminentemente teórico, o voto constitui uma declaração de constituição de mandato político: ao votar, o cidadão escolhe quem o representa e quem deverá decidir no seu melhor interesse. A justificação e a validade da actividade realizada por esse mandatário reside, pois, na escolha popular e no depósito da confiança colectiva: o decisor decide porque, muito simplesmente, a maioria determinou que ele decidisse. É uma legitimidade formal.
Reflexamente, se as decisões públicas são tomadas por agentes investidos de poderes públicos na sequência de outro processo que não o da escolha colectiva da maioria da população, essas decisões têm outro cariz que não o democrático -- terão, na verdade, o cariz equivalente ao método que presidiu à sua escolha.

3. A legitimidade de exercício é um conceito moderno. Consiste na admissibilidade de um decisor público tomar decisões que afectam toda a colectividade, determinada pela própria natureza da decisão, a qual se deve conformar com os princípios que enformam o estado de direito democrático. Tomemos um exemplo clássico fornecido por Popper: o decisor público ordena que os impostos sejam todos e apenas pagos por uma minoria da população (nomeadamente, pelos cidadãos que tenham menos de 1,60m) (Open Society and Its Enemies). O que está em causa já não é saber qual a fonte de autoridade do decisor, mas sim saber se a decisão em si poderia ser tomada pela maioria da colectividade sem que tal significasse a falência da própria colectividade e do sistema democrático. É que, no caso acima apontado, a consequência previsível seria a cisão da colectividade: os cidadãos com menos de 1,60m abandonariam a dita colectividade, excluídos que foram de nela participar em condições de justiça e igualdade. É uma legitimidade substancial.
A legitimidade de exercício surge também como coordenada primordial do funcionamento da máquina governativa: nas palavras de Hayek, «não são os poderes efectivamente detidos pelas assembleias democráticas, mas os poderes que estas atribuem aos administradores investidos na prossecução de determinados objectivos que constitui hoje o perigo à liberdade individual. Tendo concordado que a maioria deve emanar normas às quais obedeceremos na busca dos nossos objectivos individuais, encontramo-nos mais e mais sujeitos às ordens e à arbitrariedade dos seus agentes» (The Constitution of Liberty, p. 116).
Também aqui reflexamente, se as decisões públicas que são tomadas têm outra natureza que não compatível com o regime democrático, então a legitimidade para as tomar terá o cariz equivalente à natureza dessas decisões.

4. O partido que sustenta o presente governo constitucional foi objecto de sufrágio directo. Mas, na verdade, a vontade dos cidadãos no momento do voto não foi formada no pressuposto fáctico de ser este o Presidente do partido e estes os membros dos respectivos órgãos partidários. Ora, bem se vê, quando se escolhe um mandatário, escolhe-se um indivíduo -- pelo que sempre estará aí questionada a legitimidade representativa. Mas mesmo que se entenda que pelo voto se escolhe um grupo de onde poderá sair um indivíduo que será o mandatário, sempre se deverá conceder que esse grupo não é, definitivamente, aquele que actualmente compõe a cúpula do maior partido do Governo.
Temos, assim, uma situação que, não sendo de outra natureza que não a da legitimidade representativa, está precisamente na sua fronteira. É uma situação de grande fragilidade. E que carece, decisivamente, de ser amparada pela legitimidade de exercício.

5. Façamos um breve apanhado dos factos mais recentes.
A gestão da educação nacional, que o Estado Português assume como sua tarefa, está a ser realizada no campo da arbitrariedade. No que concerne à colocação dos professores, o certo é que a mesma não foi realizada de acordo com as regras previamente definidas -- em bom rigor, foi feita de forma verdadeiramente caótica. O grau de certeza criado no campo da autonomia privada foi zero.
Um Ministro do Governo interpela e invectiva um cidadão que profere opiniões pouco abonatórias acerca do trabalho daquele órgão. Apela à intervenção de uma autoridade pública para averiguar da correcção dessas opiniões. O dito cidadão é afastado do local a partir de onde emitia a sua opinião. Esta factualidade -- sem entrar, portanto, na questão de saber se foram feitas pressões directas e subreptícias, as quais já seriam do foro criminal -- é quanto baste para concluir que o Governo entra no campo da arbitrariedade. Naturalmente, qualquer cidadão sentir-se-á constrangido em proferir a sua opinião se souber que, se o não fizer de modo suficientemente abonatório para o Governo, este poderá lançar contra si os instrumentos coercivos que tem ao seu dispor. O grau de certeza criado no campo da autonomia privada foi zero.
Finalmente, as notícias vindas hoje a lume indicam que a proposta de Orçamento do Estado prevê a extinção de benefícios anteriormente atribuídos aos cidadãos. Sem que nada o fizesse prever. Sem que aos cidadãos fosse dada a possibilidade de alterar as escolhas anteriormente feitas sobre as opções tomadas pelo mesmo Estado. O grau de certeza criado no campo da autonomia privada é zero. Mas mais: consta que se pretende inverter o ónus da prova em matéria tributária, o que, em síntese, obriga o contribuinte a realizar, perante o Estado, uma probatio diabolica: provar que não auferiu os rendimentos que o agente do Estado supõe que ele auferiu. Ora, as normas segundo as quais o cidadão tem de provar, por via regra, a sua inocência perante a Administração e de que, em consequência, o Estado funciona no pressuposto de que pode actuar livre e injustificadamente sobre o cidadão são o arquétipo do estado totalitário. São, pura e simplesmente, o abandono da Rule of Law e do Due Process of Law, os quais constituem as pedras basilares de uma sociedade democrática (F.A.Hayek, The Road to Serfdom). E chamando uma vez mais Hayek, «se algo foi demonstrado pela experiência moderna a este respeito, é que, uma vez que amplos poderes coercivos são atribuídos a agências governamentais para fins específicos, esses poderes não podem ser efectivamente controlados pelas assembleias democráticas. Se estas não determinam os meios da sua utilização, as decisões dos seus agentes serão mais ou menos arbitrárias (The Constitution of Freedom).
O presente Governo atingiu, absolutamente, o ponto de inexistência de legitimidade de exercício.

6. Não reunindo qualquer legitimidade de exercício e não dispondo de uma sólida legitimidade representativa, a permanência em funções deste governo apenas se justifica pelo revestimento de outro tipo de legimitidade, necessariamente não democrática.

domingo, outubro 10, 2004
 
O desafio do Papa
Sejamos claros. A sociedade em que vivemos é uma sociedade materialista. Consumista. Hedonista. Adora a juventude, odeia envelhecer. E isto porque a juventude é sinónimo de combustão rápida, de vida vivida nos limites, de satisfação de toda e qualquer vontade sensual. É um constante turbilhão de sensações, um irresistível e amoral apelo aos sentidos. E parar esse turbilhão é envelhecer. Morrer.

É por isso que esta sociedade não sabe conviver com a morte. Não a aceita. E por isso não aceita os velhos. Não vale a pena sermos meigos com as palavras: esta sociedade tem nojo de envelhecer. E tem nojo dos velhos. Nojo. Enoja-a a incapacidade, a dependência, a limitação, a ponderação que lhes enforma a vida. Enoja-a o transtorno que eles causam nos mais novos.
Vemos tudo isso no nosso culto da juventude. É lindo ser jovem -- mesmo com 60 anos. Fazemos ginástica, dietas, curas, embelezamentos, rejuvenescimentos -- um afã frenético, doentio, semelhante ao de um náufrago que luta por se manter à tona. Vemos isso no destino final que damos aos nossos velhos, guetos de morte silenciosa.

Esta mentalidade doentia manifesta-se também na opinião comum exprimida acerca de S.S. o Papa João Paulo II. É banal ouvir dizer que deveria retirar-se; porque está velho; porque está doente; porque já não está em condições; porque já não se mexe; porque mal fala. Sem um mínimo de reflexão, o nosso impulso é concordar: «ele já deu muito, mas está na hora de mudar. É preciso dar o lugar a alguém mais novo, mais vibrante».

Ora, se pensarmos um pouco sobre o assunto chegamos rapidamente à conclusão de que o Papa nos dá, assim, o maior testemunho de humanidade de que temos memória nos tempos mais recentes. E um testemunho muito mais valioso de o que qualquer outro (mais novo), na sua posição, poderia dar.
Porquê? Porque ele não desiste. Para ele, a velhice e a doença são meras vissicitudes, obstáculos a superar, que não o impedem de fazer o que tem a fazer. A doença não o condiciona -- e se não o condiciona, não o define. A velhice também não o condiciona -- e, por isso, também não o define. Assim, ser ou não velho é indiferente para a definição da sua humanidade, para a medição da sua utilidade ao próximo. Transforma-se assim num exemplo de vitalidade -- independentemente da sua doença e da sua velhice. Uma demonstração de que nenhum ser humano tem prazo de validade, de que não há limites para o valor da vida humana e de que nenhuma pessoa pode ser substituída por outra.

Mas o Papa não se limita a conduzir impassivelmente a sua vida. Poderia, de facto, remeter-se a uma vida útil mas mais discreta. Não é, contudo, essa a sua opção. Ele faz mais: ele expõe-se. Sabe qual o mundo que nos rodeia e vem interpelar-nos. Ele exibe-nos as suas limitações físicas. Fá-lo para que todos o vejam a superá-las. É um moscardo da nossa consciência. O resultado é um comovente testemunho do verdadeiro sentido da dignidade da pessoa humana.
A nossa sociedade ocidental vive uma crise de valores. Essa crise manifesta-se também (e sobretudo) na nossa relação com a velhice. E a resposta mais vigorosa é o nosso Papa que a dá. Como Cristo. Com o holocausto do seu corpo.

sexta-feira, outubro 08, 2004
 
Penetra

Posted by Hello

Para quem não consegue ler a legenda: «Descrição: O Presidente George Bush, à esquerda, cumprimenta o Presidente da Guatemala Oscar Berger, ao centro, e um homem não identificado num almoço para os líderes mundiais presentes no dia de abertura da 59.ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas».

quinta-feira, outubro 07, 2004
 
O Tempora! O Mores!
Séneca diz qualquer coisa como isto: «Comentemos um erro, um mal. Habituamo-nos ao erro e ele torna-se um vício; e, finalmente, o vício entranha-se e torna-se a normalidade. Assim chegamos ao ponto mais baixo da corrupção moral» (Cartas a Lucílio). Este ensinamento é precioso no âmbito da Teoria da Avaliação Moral. Apela a uma apreciação consequencialista dos nossos actos.

Numa esfera eminentemente individual, impõe uma análise constante das nossas acções, impõe que nos questionemos a toda a hora acerca da justeza e da bondade das nossas opções. Em concreto: «o meu acto é um erro? E se o for, o meu acto subsequente contribui para o enraízar? Ou para o extirpar?» São questões que nos levam a um aperfeiçoamento ético individual, a percorrer um caminho no sentido da Virtude e da Sabedoria.

O mesmo juízo tem aplicação na esfera colectiva, na res publica. Quando Séneca nos interpela neste campo, em que moldes o faz? «Este acto é errado? Em que medida os meus actos o defendem? Ou o contrariam?» Aqui, o apelo é dirigido à nossa responsabilidade de agentes políticos inseridos na sociedade: somos sempre responsáveis pelo estado de coisas em que vivemos, ou porque o provocamos ou porque o incentivamos ou consentimos. E o objecto do apelo é sempre o bem moral geral, o bem comum.

Serve tudo isto para dizer o seguinte: nos tempos que correm, há um estado de espírito generalizado de complacência para com a actividade governativa. Não só para com o Governo; mas para com toda a actividade governativa. Isto das velhas frases de recriminação da classe política -- em que «eles» constituem um grupo à parte -- não são uma forma de atribuição de responsabilidades: são uma forma de demissionismo. Assistirmos aos erros e nada fazermos coloca-nos na segunda parte do dilema. Ou seja, contribuímos para transformar erros em vícios. Não nos queixemos, depois, quando tivermos de conviver com essa podre normalidade.

segunda-feira, outubro 04, 2004
 
JUDEN RAUS!

Aluna Muçulmana Rapou o Cabelo para Continuar a Estudar

Sexta-feira passada, Cennet, de 15 anos, apresentou-se no liceu de Estrasburgo de cabeça rapada, esperando assim ser aceite nas aulas sem violar os princípios da sua religião, que lhe recomendam não mostrar o cabelo. «Rapei o cabelo para obedecer a duas leis: à lei de Deus e à lei francesa», explicou esta aluna muçulmana, de origem turca, que usa o véu desde os 11 anos.

Com a entrada em vigor da lei sobre os sinais religiosos ostensivos, no começo deste ano escolar, Cennet pensava ter encontrado uma solução ao apresentar-se à entrada do liceu, a 2 de Setembro, com um chapéu na cabeça. O reitor pediu-lhe para o retirar, e perante a recusa da aluna, instalou-a a estudar na biblioteca. Seguiram-se três semanas de diálogo entre a direcção do liceu e a aluna, em conformidade com a directiva de aplicação da lei. Mas o bloqueio era total e Cennet estava ameaçada de expulsão.

A jovem de 15 anos, que recusa seguir o ensino por correspondência - cujos custos são pagos pelo Estado nos casos em que o não respeito da lei sobre os sinais religiosos provoque a expulsão dos alunos - quer antes de mais estudar numa sala de aulas com outros colegas. Única menina de uma fratria de cinco rapazes, Cennet não conta com o assentimento nem da mãe, nem do pai e ainda menos dos irmãos na sua resolução de usar o véu. «Mas esta decisão é dela, e o nosso dever de pais é darmos-lhe o nosso apoio», disse a mãe à agência Reuters.

Este caso algo triste é uma excepção nesta «rentrée» escolar que prometia ser explosiva com a entrada em vigor da lei sobre os sinais religiosos. Mas o rapto de dois jornalistas franceses no Iraque, e a exigência de anulação da lei feita a Paris pelos seus captores, o grupo islamita radical «Exército Islâmico no Iraque», mudou completamente a situação.

A comunidade muçulmana, que se sentia particularmente visada pelo texto legislativo - mesmo que ele se aplique a todas as religiões -, mobilizou-se inteiramente a favor da libertação dos jornalistas e contra a reivindicação dos raptores. Nestas circunstâncias, nenhuma família desejou entrar numa prova de força com o Estado.

apenas 28 casos de bloqueio recenseados, actualmente, em toda a França. Em geral, todos os alunos podem usar os sinais religiosos que desejarem, devendo retirá-los apenas à entrada do estabelecimento escolar público. Um mês depois da entrada em vigor da lei, os jovens que mais sofrem são, afinal, os "sikhs", a quem a sua crença religiosa impõe nunca cortar o cabelo e de o cobrir obrigatoriamente com um turbante.

(in Público, 3 de Outubro de 2004)

Esta notícia merece-me dois comentários.

1. As consequências da segregação começam a fazer-se sentir. Para uma muçulmana, a única forma de compatibilizar a sua fé e a lei -- porque pretende, livre e voluntariamente e no cumprimento dos ditames da sua fé, usar o véu -- é rapar o cabelo. Essa é a única forma de entrar numa escola pública francesa. Ou seja, é perfeitamente razoável, em França, adoptar leis que geram, em nome de uma suposta secularidade, auto-mutilações físicas. O filme não é novo; mas em todo o caso, uma salva de palmas para o governo francês...


2. Destaque merece também o tratamento tendencioso da notícia (cujas partes mais gritantes não deixei, nos últimos três parágrafos, de sublinhar).

O caso é «algo triste». Causa alguma sensação -- mas não muita; não demais. Não é muito importante, é só uma rapadela numa selvagem apegada ao seu totem. Além disso, foi uma excepção, o que demonstra a perfeição e bondade da lei. Que até os deixa usar isso na rua, só não podem usar é onde estudam... É uma cabotina, é o que é. E só mais 28 pessoas é que deram problemas. Isto num país inteiro! E muita sorte têm, porque os irmãos deles andam a raptar pessoas lá no Iraque e à conta disso deviam era levar nas orelhas. Mas não provoquem o Estado Francês! Caladinhos é que é bonito!..


 
Para quando um «ranking» de sindicatos?

Carregal do Sal mudou de «estratégia» depois dos
«rankings»

Não houve excepção: todos os órgãos da Escola Secundária de Carregal do Sal, no distrito de Viseu, analisaram «cuidadosamente» os resultados dos «rankings» divulgados em anos anteriores, sobretudo o de 2003. «Discutimos os nossos resultados e tentámos arranjar estratégias para melhorarmos», recorda Ana Magalhães, presidente do conselho executivo.

Os primeiros resultados estão à vista: de 2003 para 2004, a escola subiu 175 lugares na lista que analisa a média das oito disciplinas. Já no que toca apenas aos resultados de Matemática, a recuperação foi ainda maior: da 396.ª posição, passou para a 35.ª, com uma média de 11,7 valores.

Qual foi o segredo? «Uma das coisas que fizemos foi repensar os critérios de avaliação. Decidimos que teríamos que dar mais ênfase ao conhecimento dos alunos, sobretudo aos do secundário, que estão já noutro patamar», explica Ana Magalhães.

No caso da Matemática, a escola chegou à conclusão que, também no ensino secundário, seria benéfico concentrar as aulas da disciplina nos primeiros tempos da manhã, altura «em que os alunos» estão mais frescos». Para além disso, para os estudantes do 12.º ano, foi criada, desde o arranque do ano lectivo, uma aula semanal suplementar. A escola decidiu também que o professor de matemática deveria acompanhar os alunos desde o 10.º ao 12.º ano, para assegurar «continuidade pedagógica».

(in Público, 2 de Outubro de 2004, Destacável «Ranking»)


Fenprof diz que «rankings» são «mistificadores e demagógicos»

A Federação Nacional dos Professores (Fenprof) volta este ano a demarcar-se da iniciativa de publicitar a lista ordenada das escolas secundárias com base nas notas dos exames nacionais do 12.º ano, divulgada ontem por vários órgãos de comunicação social. Em comunicado, a estrutura sindical escreve que o «discurso que reduz os indicadores de qualidade das escolas aos resultados dos alunos nestas provas é mistificador e demagógico».

As razões apontadas pela Fenprof são várias, a começar pelo facto de não se poder avaliar as escolas «tendo apenas em conta os resultados dos alunos em exame». Até porque a Lei de Bases do Sistema Educativo atribui à escola várias finalidades, nomeadamente «o desenvolvimento de capacidades e comportamentos que não são avaliáveis em testes escritos».

Por outro lado, a federação entende que estes «rankings nada dizem sobre o contexto em que cada escola se insere, os recursos de que dispõe, os processos que desenvolve e os resultados que obtém nas várias vertentes do seu trabalho».

A Fenprof critica ainda o facto de estas listas serem apresentadas como «pretendendo ser um estímulo à melhoria das "piores" escolas», mas que acabam por «colocar dificuldades acrescidas, tornando os estabelecimentos de ensino alvo de discriminação e desmoralizando alunos, professores e pais».

Ou seja, conclui a federação, os «rankings» servem apenas para «induzir uma lógica de mercado na educação» e constituem uma forma de «publicidade enganosa». Para a Fenprof, só uma avaliação integrada das escolas permite ter uma informação «credível».

(in Público, 3 de Outubro de 2004)


Como pode a Fenprof desejar ser parceira de reforma do sector educativo? Os professores são seus reféns.



Powered by Blogger