Peço a Palavra
segunda-feira, outubro 25, 2004
 
Casos análogos
Rocco Buttiglione é o nome da mais recente celeuma da política europeia. José Manuel Barroso escolheu-o para se ocupar da política comunitária na área da Justiça. Escolha essa intolerável, de acordo com um coro de críticas: Rocco é católico. Entendem-se como inaceitáveis as opiniões expressas por Buttiglione acerca da homossexualidade e do papel da mulher na sociedade -- que adviriam da sua religiosidade. Mais, entende-se que tais opiniões são repulsivas à luz dos valores maioritários que proliferam no tecido social europeu. E que a sua religiosidade não se coaduna com as tarefas que lhe vão ser atribuídas -- receia-se que tente utilizar os poderes que lhe são conferidos para evangelizar.

Ora, convém esclarecer desde já que este não é um dilema novo. As razões apontadas para obstar ao empossamento de Buttiglione são manifestações da mesma razão que conduziu o Parlamento francês à aprovação da Lei do Véu e que origina o erguimento de obstáculos à adesão da Turquia à UE. E que sustenta a argumentação daqueles que pretendem deixar ao largo do preâmbulo da Constituição Europeia qualquer referência à herança cristã na fundação da Europa -- nem se discutindo, inclusivamente, o contributo das demais religiões abramânicas. Numa palavra: em causa está a contradição existente no nosso mundo europeu entre materialismo secular e crença, contradição essa que já foi apontada, por exemplo, por Akbar S. Ahmed (Pós-Modernismo e Islão).

O que se argumenta é que o projecto europeu é um projecto isento de influências sujeitas a discussão, a divisionismos. É um projecto que se pretende congregador e não representante de um ponto de vista. É por esse motivo que o exercício de funções públicas deve ser dissociado de qualquer código moral -- sobretudo se esse código for oriundo da esfera religiosa. E, do mesmo modo, é por isso que a configuração da própria UE não deve estar relacionada com qualquer legado ou interferência da esfera religiosa.
Nesta perspectiva, aceitar que o projecto europeu está historicamente associado a um legado dessa natureza ou que os agentes políticos envolvidos nesse processo se guiam por esses padrões morais é um retrocesso. Porque tal evento representaria um suposto desvirtuamento do projecto multi-cultural europeu.

É esta a mentira que importa desmascarar. Em primeiro lugar, é uma falsidade histórica. A esfera religiosa teve um papel central na vivência europeia e dos europeus ao longo dos séculos. E constitui um substracto precioso do projecto europeu.
Para além do mais, a argumentação é absurda -- e é absurda porque oculta a verdade. Qualquer indivíduo é um agente moral. Um indivíduo que rejeite um código moral de origem religiosa não irá, consequentemente, actuar cegamente como um autómato. Ele actuará de acordo com outro código moral -- um código moral de índole materialista, onde os vectores de religiosidade não entram. Esse código moral é o do materialismo secular. Simplisticamente e no campo da decisão política, o materialismo secular é um fruto do Iluminismo e do materialismo. É o domínio da tecnocracia, o campo privilegiado do utilitarismo materialista. É esta a verdade que não se diz em voz alta.

Ou seja, o fenómeno a que assistimos não é o da criação de um espaço livre para um exercício asséptico de poderes. O que se quer é substituir um código moral por outro.
A Constituição Europeia, a Turquia, a Lei do Véu e o caso Buttiglione são manifestações de um mundo que se sente pouco à-vontade com a crença. A luta a que assistimos não é, pois, a da defesa do projecto europeu contra investidas de um mundo religioso, velho e regressivo. Assistimos sim à sobrevivência, no espaço europeu, da possibilidade de haver agentes morais que se guiam por códigos religiosos ou não materialistas.

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