Peço a Palavra
quarta-feira, setembro 29, 2004
 
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Em comentário a este post de JZM, no Impecável, sói dizer o que se segue.

JZM parte dos seguintes factos, retirados do «Relatório do Emprego na Europa 2004»:
- nos últimos cinco anos, a UE apresentou uma taxa de crescimento de emprego de 4,9%;
- nos últimos cinco anos, os EUA apresentaram uma taxa de crescimento de emprego de 2,9%;
- o sector industrial dos EUA perdeu mais 2,5 milhões de postos de trabalho do que o da UE;
- a UE criou 10 milhões de empregos no sector dos serviços;
- o crescimento do emprego na UE, no ano passado, foi de 0,2%;
- o crescimento do emprego nos EUA, no ano passado, foi de 0,9%;
- na linha das conclusões do Relatório, os EUA e o Japão registam melhores níveis de desempenho, tanto ao nível do crescimento de emprego, quanto ao nível do mercado laboral;
- a Europa apresentou uma recuperação económica mais ténue.

Tomando estes factos, JZM conclui, quanto ao crescimento do emprego, que Portugal apresenta uma taxa de crescimento do emprego inferior à média comunitária e que a UE, embora com um crescimento económico genericamente inferior ao dos EUA, apresenta níveis de crescimento de emprego superiores à “terra de todos os sonhos”.

Ora, e em relação ao último facto retirado do Relatório, é realmente estranho que a UE tenha um índice de crescimento do emprego sem um equivalente crescimento da economia. Porque, em bom rigor e numa economia saudável, são fenómenos indissociáveis. Para que efeito iria um empresário criar postos de trabalho sem ter um escoamento que o justifique?
A estranheza também não passa ao lado de JZM: «não deixa de ser paradoxal que na Europa a criação de emprego não venha directamente associada à produção de riqueza económica, registando-se mesmo uma tendência para o afastamento entre os dois pólos de análise [sublinhado do Peço a Palavra]».

A minha divergência com JZM surge na sua explicação para o fenómeno: esta, «embora de contornos simplificantes, pode buscar-se na diminuição das garantias juslaborais e, por consequência, na maior volatidade do mercado de emprego que vem atravessando quase todos os Estados-Membros: potenciando uma maior rotatividade no trabalho (turn-over), este factor acaba por diminuir os ciclos temporais de desemprego, ainda que a expensas de um enfraquecimento da posição garantística outrora ocupada por quem dispõe (ou quer dispor) da sua “força de trabalho”».

Na minha opinião não é a volatilidade que explica o fenómeno. E porquê? Porque essa volatilidade não existe numa escala que justifique tornar-se numa causa.
1. Em primeiro lugar, a relação jurídica laboral na UE está longe de ser uma relação de igualdade de partes como a que existe nos EUA. A relação jurídica laboral continental é consabidamente uma relação assente na desigualdade de partes, política e historicamente motivada. Não tenhamos pruridos: é uma opção, há muitas décadas assumida pelas sócio-democracias europeias, de defesa do trabalhador no sentido da sua estabilização profissional. Os ordenamentos jurídicos europeus partem do pressuposto de que o empregador se encontra numa situação de facto de força, contrabalançando-a com um importante acervo de direitos e garantias atribuídos ao trabalhador. Não é permitida, consequentemente, uma verdadeira agilidade nos processos de contratação e despedimento.
E mesmo que existisse a dita «volatilidade laboral» na UE, ela estaria ainda longe da sua homónima americana. E assim sendo, ergo sum, nos EUA o crescimento do emprego deveria ser superior -- o que não sucede.
2. Em segundo lugar, o espaço comunitário (ainda) não funciona como um espaço onde os cidadãos circulam livremente em busca de emprego, independentemente da sua nacionalidade. Dito de outro modo: os dinamarqueses não procuram emprego em Portugal; nenhuma família de Ferrol, Galiza, se muda pacatamente, de armas e bagagens, para Kalámata, Peloponeso. Já ao contrário, os EUA funcionam como um único mercado laboral, o que facilita o casamento de oferta e procura. Justificar-se-ia, então, uma superiorização da empregabilidade nos EUA face ao espaço europeu -- o que, como se viu, não é o caso.
Em suma, a dita volatilidade não é a resposta para o fenómeno. Qual é, então?

Há uma razão formal e outra material.
1. A razão formal para o menor crescimento do emprego nos EUA é, simplesmente, o facto de aí o desemprego ser, à partida, muito menor do que na UE. E se o desemprego é menor, o aumento do emprego é, reflexamente, menor -- há menos para crescer. A Argentina também tem taxas de crescimento de 100%; mas apenas porque atingiu, antes, um ponto nulo de retrocesso. São os problemas das estatísticas.
2. A razão material para o fenómeno encontrar-se-á no desemprego absorvido pelo funcionalismo público. Não nos podemos esquecer: (i) das mais recentes medidas anunciadas pelo governo federal alemão no sentido de «emagrecer» o Estado; (ii) que o aumento do desemprego em Portugal acentuou-se com a suspensão de contratação de funcionários públicos, imposta em 2002. Por outro lado, qual é a criação de riqueza produzida pelo funcionalismo público? Objectivamente, nenhuma. Assim, este aumento do emprego não carece de riqueza aprioristica. Aliás, o crescimento do funcionalismo público tem, por via de regra, o efeito de entravar o próprio crescimento económico. Que tipo de actividade prestam os funcionários públicos? Serviços. Quantos funcionários públicos foram contratados na zona da UE e quantos o foram nos EUA? Muitos mais.

Comments:
Existem tantas formas de ler as estatísticas...

André (http://observador.weblog.com.pt)
 
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