Peço a Palavra
segunda-feira, novembro 22, 2004
 
Sugar, spice and everything nice

Posted by Hello

terça-feira, novembro 16, 2004
 
Ad Majorem Dei Gloriam
Há uma pergunta que os católicos devem formular quando se movimentam na polis: até que ponto o meu catolicismo deve condicionar a minha praxis política? Qualquer indivíduo movido pela Fé, esteja ele a exercer os direitos e deveres políticos em posições com maior ou menor visibilidade, deve colocar-se constantemente esta interrogação. Ou mais ainda: em que medida contribuo para a realização do Plano de Deus?
Ora, o nosso quotidiano revela que essa pergunta é cada vez menos formulada. Ao contrário, é cada vez mais audível no debate público o entendimento de que se deve traçar uma crescente dissociação entre a Fé que certos agentes políticos dizem ter e os seus próprios comportamentos. E esse divórcio é-nos proposto, ad nauseam, ao nível jusante dos titulares de cargos políticos e ao nível montante do cidadão comum que tem de tomar a opção essencial e, muitas vezes, diária. A ideia é esta: deve ter-se uma moral (a que quisermos) para utilizar na nossa vida de relacionamentos directos; e outra moral (anódina) para tratar assuntos que respeitam à comunidade, essa mole não-identificada que é saco para se meter de tudo. Como se dissesse que as virtudes são sapatos para se usar só em casa.

Sucede que essa não deve ser a postura de um católico. Para um católico, o compromisso com Jesus Cristo preenche toda a vida. A adesão é total. O que se retira deste postulado?
Retira-se que, como revelou Jesus Cristo, a relação humana é estabelecida em função do próximo. É o próximo que determina o nosso comportamento. A pessoa humana só se realiza -- em bom rigor, só existe -- se a concebermos em relação com o próximo. E o próximo não é apenas aquele que apreendemos com os nossos sentidos: o que está ao alcance da visão ou da audição. Porque o Mundo foi concebido por Deus, não pode haver uma hierarquização de mais longe e de mais perto, de antes e de depois -- Deus e a sua Igreja são omnipresentes e intemporais. Por isso, o próximo é aquele com quem temos laços por via familiar, social, nacional e (até) à escala da Humanidade. Mais: o próximo está também nas gerações passadas e nas gerações vindouras. Todo e qualquer um é um nosso próximo. Dito de outro modo: o Homem é uma rede de relacionamentos com todos os que lhe são próximos. E, por esse motivo, os valores com que conduzimos a nossa vida -- em função dos quais tomamos as nossas opções -- são os mesmos quer estejamos a decidir acerca do futuro do nosso vizinho quer nos debrucemos sobre o futuro de toda a comunidade.

É neste contexto que se deve entender que o exercício de qualquer direito ou dever políticos é instrumental da Fé -- e não o contrário. É por tudo isto que existem balizas morais inamovíveis no nosso comportamento e nas nossas escolhas. Não se abrem parêntesis na avaliação moral.
A afirmação da Fé deve verificar-se, consequentemente, tanto na definição de todo e qualquer objectivo político a perseguir quanto na definição dos meios que nos propomos lançar mão para o atingir. Seja qual for o plano em que estivermos.

sexta-feira, novembro 12, 2004
 
O rearmamento da Europa
Referi, na sequência das eleições americanas, que seria bom que os seus resultados fossem um contributo para a discussão sobre o reequacionamento da posição da Europa no Mundo. Com efeito, o problema com que a Europa se debate não é se a Casa Branca é ocupada por fulano A ou B. Para isso seria necessário que a Europa tivesse bem definido qual o seu papel no Mundo, o que é o seu interesse, quais são os meios necessários para o prosseguir e quais são as circunstâncias que o envolvem. Ora, é exactamente isto que está em grande parte por fazer. Nessa perspectiva, Carlos Vale Ferraz deu ontem um notável contributo para perceber qual deve ser o caminho a trilhar.

E é este: a Europa é um dos três pontos chave da economia global. Tem o maior mercado interno do mundo e uma divisa mais forte que o dólar. Acresce que, ao contrário dos EUA, do Japão e da China (que se apresenta como o futuro quarto pólo), a Europa tem ainda um substancial potencial de crescimento territorial e demográfico. O crescimento para a Europa de Leste, para os Balcãs e para o Médio Oriente é apenas uma questão de tempo e de modo. Todavia, a Europa permanece, neste jogo de forças, como um anão geoestratégico. E por duas razões.
A primeira é o ainda precário estado de desenvolvimento da sua integração política. Importa estabelecer a Europa como um corpo político único. E interessa pô-la a funcionar como uma única entidade nacional, em que permancem os seus membros a funcionar como entidades estaduais. Mas isso são contas de rosário que ficam para calendas.
A segunda razão é a ausência de uma política militar que dê músculo à preponderância económica europeia e que seja capaz de projectar força em defesa tanto da construção do seu espaço de influência quanto dos seus interesses.

Esta ausência tem a explicação histórica já aqui referida do «chapéu-de-chuva americano». Durante 50 anos não foi exigido à Europa o esforço de militarização que seria necessário à afirmação de uma política externa própria. A Europa dotou-se, apenas, dos meios defensivos necessários a formar uma primeira barreira de resposta a uma invasão soviética.
Mas desde 1989 que os dados do problema são diferentes. A política externa não é comum à americana e a Europa vê-se na circustância de ter de impor, isoladamente, os seus interesses. Ou de ter de obstar a que interesses antagónicos se imponham livremente.

A remilitarização da Europa é, pois, um passo essencial na composição de uma nova ordem mundial: como meio de impor uma vontade; e como disuasor de interesses alheios.
Para cumprir tal desiderato, impõe-se vencer duas batalhas. A primeira é uma batalha de mentalidades. O tal «chapéu-de-chuva americano» criou um estado de espírito generalizado na Europa de que as relações mundiais podem processar-se, em absoluto, num mundo despido de coercibilidade. A dimensão militar da existência de um Estado é, hoje, um parâmetro que está fora do quadro mental popular e da maioria dos governantes europeus. É essa mentalidade que tem de ser vencida. Antes que a realidade a imponha da pior maneira.
Por outro lado, os Estados europeus têm de estar dispostos a gastar muito mais com a defesa do que fazem actualmente. Sendo esmagora a supremacia de meios e de tecnologia militares americana, à Europa pede-se um esforço não só de acompanhamento como de reaproximação. Isso implica dinheiro. Ora, o peso do esforço militar americano no seu Orçamento é, actualmente, de 2,5% do PIB. Na Europa, em média, pouco passa de 1%. Mantendo-se estes dados, a tendência é de crescimento do afastamento. Para que a tendência seja invertida, mister é que o esforço europeu suba, tão brevemente quanto possível, para a casa dos 5%.

O problema é que esse aumento de investimento pressupõe a tomada de opções que a opinão pública não estará disposta a aceitar, excepto se se verificar a referida alteração de mentalidades. Porque implica diminuir o investimento nos sistemas de segurança social, nos incentivos ao emprego e em tudo o que seja subsídio. Porque implica readoptar formas eficientes de conceber sistemas de serviço militar obrigatório.
Já se antevê que esta não é tarefa fácil. Mas é o desafio que nos é imposto.

quinta-feira, novembro 11, 2004
 
Governo - Vamos ao domicílio
1. Segundo o Público de hoje, o Primeiro Ministro prepara-se para enviar, por carta, uma explicação do OE aos portugueses. Trata-se de mostrar ao contribuinte o porquê de cada decisão; a razão oculta de cada opção política.
A medida é inédita. Nunca nenhum Governo se lembrou de explicar pessoalmente o porquê das suas decisões. É como o Executivo ir a casa de cada cidadão e, depois de jantar, em ambiente de serão cultural, ajudá-lo a apreciar as medidas aprovadas pelo próprio Governo. «Vamos mostrar-lhes como devem ajuízar o nosso próprio desempenho». Notável. Esta obsessão explicativa e comunicativa do elenco governativo não tem limites.

2. Há, contudo, aqui -- há sempre, com este Governo -- um «mas» legal. O primeiro é saber se o Governo pretende levar a cabo esta iniciativa com recurso a mailing. Ora, se for esse o caso, o Governo não tem -- que eu saiba -- uma base de dados com os elementos pessoais de cada cidadão. Eu, pelo menos, não me recordo de ter contribuído para esse arquivo. Assim sendo, como pretende fazê-lo? Vai requerer os elementos pessoais a quem? E pretende obter a autorização dos futuros destinatários? Ou a protecção de dados pessoais será esquecida?
Se, por outro lado, se trata de pura publicidade -- como se de um folheto do Continente se tratasse --, será que os autocolantes «Publicidade aqui, não!» serão respeitados? Podemos repudiar a palavra do nosso Ilustre Governo como quem afasta um vendedor de banha da cobra? Tal é o nível em que este Governo se coloca...

3. Por último, importa referir que não cabe ao Estado -- a nós, portanto -- suportar as despesas de propaganda dos titulares de um determinado Governo, sobretudo quando essa propaganda tem o bondoso e caritativo objectivo de explicar as suas próprias opções políticas... Os cidadãos não têm de pagar a publicidade que o Governo, enquanto corpo político, faz de si próprio. É absurdo que nos imponham uma voz autorizada para construir uma opinião. É inacreditável termos chegado a este ponto de total ausência de fronteira entre as funções de um Governo constitucional e o melhor interesse dos seus titulares.

PS - E quem será a feliz contemplada com a adjudicação desta prestação de serviços?

segunda-feira, novembro 08, 2004
 
São os EUA uma democracia? Breve recensão histórica
1. Tem sido questionado o pendor democrático do sistema político e eleitoral americano. Questiona-se essencialmente -- e questionou-se sobretudo em 2000 -- que, em detrimento de um candidato mais votado, o candidato com menor número de votos populares expressos possa ser eleito Presidente. Em síntese, o argumento é o de que um sistema no qual a escolha do principal governante não reflecte a opção da maioria dos cidadãos é um sistema em que não existe uma verdadeira legitimidade democrática nascida da representação.

2. A fonte desse putativo défice democrático residiria no teor do Artigo 2.º, Secção I, § 2.º, da Constituição Americana (CA), nos termos da qual
«each State shall appoint, in such Manner as the Legislature thereof may direct, a number of Electors, equal to the whole number of Senators and Representatives to which the State may be entitled in the Congress [...]».
De certa maneira, esse regime poderia estar em contradição com o próprio preâmbulo da CA, o qual declara que

«we the People of the United States [...] do ordain and establish this Constitution for the United States of America»,

dando a entender que a vontade popular manifestada pelos cidadãos se configura directamente como o pilar essencial da União.
Mas não é assim. Importa ter presente que os EUA não são um estado unitário democrático, mas sim uma República Federal. Essa diferença não é um mero capricho terminológico, mas sim um traço genético que determina todo o funcionamento do País -- e, nomeadamente, do seu próprio sistema eleitoral. Com efeito, o edifício constitucional americano -- e também o eleitoral -- é feito de um subtil equilíbrio entre as necessidades de dar voz à Maioria dos Estados e à Maioria do Povo. Como a arquitectura constitucional americana mantém, neste ponto, o mesmo desenho que lhe foi originalmente conferida, uma leitura histórica ajudará a dissipar dúvidas.

3. Após o grito de independência, as Colónias rebeldes formaram uma Confederação. No contexto dessa confederação, os Estados foram investidos de um impressionante grau de autonomia. O texto constitucional então em vigor, o Articles of Confederation de 1778, era claro ao estipular que

«each State retains its sovereignty, freedom and independence, and every Power, Jurisdiction and right, which is not by this confederation expressly delegated to the United States, in Congress assembled» (Artigo II).

Ou seja, o ponto de partida político da história dos EUA foi a existência de um conjunto de territórios soberanos que mútua e voluntariamente contribuiam entre si com os melhores esforços de ajuda, sem que, contudo, esse abraço impedisse outros movimentos agregadores expressamente manifestados em Congresso.

4. Essa opção não foi, contudo, fruto da existência de um estado de espírito autonomista ou, até, da existência em cada Colónia de valores nacionalistas individualizados. Foi, sim, uma solução adoptada tendo em vista obter sucesso na guerra de independência em curso. É que, em face de uma ausência de poderes centralizados instituídos, havia a clara necessidade de depositar a governação unicamente nos poderes locais já existentes. Assim se explica, aliás, que o Artigo III do mesmo texto disponha que

«the said States hereby severally enter into a firm league of friendship with each other, for their common defence, the security of their Liberties, and their mutual and general welfare, binding themselves to assist each other, against all force offered to, or attacks made upon them, or any of them, on account of religion, sovereignty, trade, or any other pretence whatever».

5. Foi pois um compromisso com as necessidades imediatas que ditou a opção inicial dos founding fathers. Mas o seu intuito de sempre não se reconduzia à construção de um Estado confederado de mera associação. E assim sendo, rapidamente se caminhou no sentido de fazer aprovar uma verdadeira Constituição que desse à luz um Estado Federal.
Nesse novo Estado Federal foi configurado um poder central detentor de um papel político e executivo preponderante, o qual deveria erguer-se como o veículo de execução de uma política comum a todos os Estados. Ou seja, pretendeu-se dar corpo à ideia de que os Estados Unidos deviam construir-se em dois patamares: o primeiro de natureza estadual, visando responder às necessidades locais de cada Estado; e um plano federal, nacional, em que a referência governativa é o bem comum, geral, e não de cada um dos Estados. Desse modo se tentou combater as insuficiências reveladas pelo sistema confederativo para amparar politicamente o espírito de União social e económica existente.
Nas palavras de Alexander Hamilton,

«there is a wide difference between our situation and that of an empire under one simple form of government, distributed into counties provinces or districts, which have no legislatures but merely magistratical bodies to execute the laws of a common sovereign. [...] In our case, that of an empire composed of confederated states each with a government completely organised within itself, having all the means to draw its subjects to a close dependence on itself -- the danger is directly the reverse. It is that the common sovereign will not have power sufficient to unite the different members together, and direct the common forces to the interest and happiness of the whole» (To James Duane, 03.09.780).

6. Foi esta a pedra de toque para o movimento de fundação dos EUA tal como os conhecemos hoje.
O ponto primordial e superlativo em relação a qualquer outro valor é o da cimentação da União presente e futura. Foi essa a coordenada dada por James Madison quando afimou que

«[...] o objectivo imediato da Constituição federal é garantir a União dos treze Estados primitivos, que sabemos ser praticável; e adicionar-lhe outros Estados que possam surgir no seu próprio seio ou na sua vizinhança, coisa que que não podemos duvidar que também é praticável» (Federalist n.º 14, 30.11.787).

É à luz deste princípio que devem ser observados todos os outros valores preponderantes da revolução americana. A necessidade de União é, ambivalentemente, causa e reflexo dos demais valores. É o ponto centrífugo e centrípeto da existência do Estado Federal e de todos os valores por ele protegidos. No fundo, todos os mecanismos que impeçam a desagregação estadual da União vão, de igual modo, proteger os demais valores essenciais da União. Colhendo a lição de Alexander Hamilton, pode-se dizer que

«uma União Firme será da maior importância para a paz e liberdade dos Estados, como uma barreira contra facções e insurreições internas. [...] A Constituição proposta, longe de implicar uma abolição dos governos dos Estados, faz deles partes constituintes da soberania nacional, concedendo-lhes uma representação directa no Senado, e deixa na posse deles certas partes exclusivas e muito importantes do poder soberano. Isto corresponde inteiramente, em todos os significados racionais dos termos, à ideia de um governo federal» (Federalist n.º 9, 21.11.787).

7. Por outro lado, a expressão da vontade popular na determinação do seu próprio futuro deve ser avaliada tanto como uma origem de coesão da União quanto como um tesouro que a União deve guardar. Não é, pois, unicamente o equilíbrio entre os Estados que deve ser garantido, mas a efectiva participação do Povo no processo político do corpo político mais abrangente. No debate realizado na Convenção da Pennsylvania tendente à adopção da CA por este território, James Wilson explicou:

«As this government is formed, there are two sources from which the representation is drawn, though they both ultimately flow from the people. States now exist and others will come into existence; it was thought proper that they should be represented in the general government. But, gentlemen will please to remember, this constitution was not framed merely for the states; it was framed for the PEOPLE also, and the popular branch of the congress, will be the objects of their immediate choice» (James Wilson Replies to Findley, 01.12.787).

Ou seja, dar voz ao Povo é um tanto um meio de preservar a União quanto um dos objectivos para o qual a União foi realizada. Abraham Lincoln resumiu posteriormente este entendimento, quando se caminhava para o momento mais difícil da história dos EUA:

«I hold, that in contemplation of universal law, and of the Constitution, the Union of these States is perpetual. Perpetuity is implied, if not expressed, in the fundamental law of all national governments. [...] Descending from these general principles, we find the proposition that, in legal contemplation, the Union is perpetual, confirmed by the history of the Union itself. [...] This country, with its institutions, belongs to the people who inhabit it. Whenever they shall grow weary of the existing government, they can exercise their constitutional right of amending it, or their revolutionary tight to dismember or overthrow it» (First inaugural address, 04.03.861).

8. Mas, e fechando o círculo, por mais importante que fosse a vontade do Povo, era antes de mais essencial que a construção deste Estado Federal fosse resultante do respeito tanto da maioria do Povo quanto da maioria dos Estados. E essa noção é fácil de entender. Num Estado Federal, a expressão popular do voto é sempre exercida no contexto de um Estado. Se porventura a maioria dentro de um Estado determinasse um futuro incompatível com a União, é a sobrevivência desta que deve prevalecer. Da mesma maneira, se em termos populacionais um Estado representar uma maioria em relação aos demais, é ainda a maioria de Estados que deve prevalecer. Porque a União é composta pelos seus Estados.
Corolário desta ideia é a impossibilidade de um conjunto minoritário de Estados impor a sua vontade à maioria dos Estados. Nas palavras de George Washington, em relação à aprovação da CA,

«is best for the States to unite, or not to unite? [...] If then the Union of the whole is a desirable object, the componant parts must yeld a little in order to accomplish it. Without the latter, the former is unattainable, for again I repeat it, that not a single State nor the minority of the States can force a Constitution on the Majority» (To Bushrod Washington, 10.11.787).

Essa preponderância do ente nacional sobre os entes estaduais -- ainda que estes significassem uma maioria populacional --, que mitiga a livre expressão popular, é sempre justificada pela noção de perpetuidade e indivisibilidade da União e pela ausência de um substracto ideológico e histórico que configurasse os Estados como entes primordiais. Foi esse, aliás, o principal argumento eximido por Lincoln para obstar à Secessão verificada no século XIX:

«This sophism derives much -- perhaps the whole -- of its currency, from the assumption, that there is some omnipotent, and sacred supremacy, pertaining to a State -- to each State of our Federal Union. Our States have either more, nor less power, than that reserved to them, in the Union, by the Constitution -- no one of them ever having been a State out of the Union. The original ones passed into the Union even before they cast off their British colonial dependence; and the new ones each came into the Union directly from a condition of dependence, excepting Texas. And even Texas, in its temporary independence, was never designated a State» (Special message to Congress, 04.07.861).

Que, no fundo, fez eco do entendimento que presidiu à construção dos EUA, sintetizado por George Washington:
«If one state (however important it may conceive itself to be) or a Minority of them, should suppose that they can dictate a Constitution to the Union (unless they have the power of applying the ultima ratio to good effect) they will find themselves deceived» (To Charles Carter, 27.12.787).
9. Concluindo, a expressão da vontade popular é um parâmetro fundamental do funcionamento do sistema político e eleitoral americano, mas não pode deixar de ser cotejado com a própria essência de um Estado Federal: é a maioria dos Estados que deve ditar o futuro da União.
Dito de outro modo, em homenagem à soberania popular, o peso demográfico dos Estados não pode deixar de ser considerado, mas não pode ser erguido à condição de valor primoridial, sob pena de se desvirtuar a própria concepção federalista vigente. E é por isso que, no contexto da eleição presidencial, o factor decisivo é o número de Estados, ainda que o valor desse número seja mitigado pelo peso que cada Estado tem no Congresso. E muito bem. Basta pensar nas consequências drásticas que adviriam da eleição de um presidente contra a larga maioria dos Estados, ainda que de acordo com a maioria dos votos expressos: a qualificação de Estados como de primeira e segunda categoria e o subsequente reequacionamento da sua posição no seio da Federação.

quinta-feira, novembro 04, 2004
 
Fenomenologia
Este fenómeno europeu de querer atribuir a vitória de Bush a causas extraordinárias -- mas nunca ao mérito do próprio, que venceu todas as quatro eleições em que participou na sua vida, duas delas de reeleição -- é bem demonstrativo do rationale instalado na Europa. Do popular e até de grande parte do político. Desde a cassete de bin Laden até à estupidez genética da população americana, tudo serve para explicar que não se tenha verificado o desfecho que a Europa considerava o mais razoável.
Volto a frisar: este fenómeno nada revela sobre os EUA ou sobre Bush, só revela sobre a Europa. É, aliás, de embatucar ver pessoas imbuídas deste estado de espírito a condenar os americanos e W. por... arrogância e unilateralismo!
Seria bom que a vitória de Bush fosse um safanão no ensimesmamento e petulância por cá estabelecidos.

terça-feira, novembro 02, 2004
 
Eleições americanas, a Europa e a nova ordem mundial
Antes que se conheçam os resultados das eleições americanas, importa fazer uma breve análise das suas potenciais implicações no jogo de poder mundial. Corre a teoria de que uma vitória de Kerry poderá significar uma qualquer inversão nas opções da política externa americana. Penso que não.

1. Os Estados Unidos sempre tiveram relações diferentes com o lado oriental do Atlântico. Muito sucintamente, os primeiros 140 anos de coexistência foram marcados por uma curiosa indiferença. Soltos das amarras coloniais, os Estados Unidos dedicaram-se nesse período à expansão do seu domínio territorial. Melhor dizendo, à expansão e à colonização da Federação no sentido do que é o seu desígnio natural: uma entidade coast to coast. Nessa perspectiva, os Estados Unidos delinearam as suas relações com a Europa em função da aquisição de territórios (Louisiana, Novo México, Califórnia, Alaska) e a ocupação de outros (Filipinas, Porto Rico, Cuba).
Do outro lado, a Europa, impedida de exercer um qualquer ascendente sobre o novo parceiro civilizacional, continuou a ser o palco central dos acontecimentos sem incluir os Estados Unidos no cálculo da relação de forças.
Tudo isso mudou em 1914. 1914 foi um prenúncio da nova importância político-económico-militar de uma nova potência emergente. Constituiu um marco, na medida em daí em diante os Estados Unidos passaram a ser um parceiro de jogo ao lado das potências europeias. Eram uma variável não negligenciável.
Em 1941, o mundo mudou para o figurino que, grosso modo, conhecemos até 1989. Os Estados Unidos deixaram de pertencer ao jogo de relações de forças europeu e mundial: passaram a dar o jogo. A supremacia americana revelou-se de ordem demográfica, militar, tecnológica e económica. Em certa medida, até moral. E no rescaldo da IIGG, a Europa passou a ser um corpo político cuja reconstrução e progresso só poderiam ser concebidas (e executadas) debaixo do chapéu-de-chuva americano (Vide Robert Kagan, Paradise and Power).

2. Muito por força do confronto com o bloco soviético, a Europa deparou-se com o seguinte dilema: o continente está devastado e é urgente reconstruí-lo; porém, do outro lado da Cortina surge uma ameça crescente, que sem hesitações aproveitará qualquer momento de fraqueza europeia. A opção natural (instintiva, imediata) foi formar um único bloco com o parceiro americano. Esta parceria (sublinho parceria) foi composta nos seguintes pressupostos e com os seguintes desideratos: (a) a Europa está destruída e precisa de ser reconstruída e protegida; (b) os Estados Unidos têm de fazer face à ameaça soviética de ordem global; (c) o tampão ao expansionismo soviético será a Europa (palco do conflito, portanto), sendo englobada como parte integrante do esforço de guerra americano, assumindo este o papel de defensor do espaço europeu; (d) formando um único bloco aliado, americanos e europeus deverão ter uma visão conjunta e coerente da situação e das opções a tomar.

3. 1989 mudou este cenário de forma radical. Mudaram os pressupostos: a Europa estava já reconstruída e não mais carecia de ser defendida; os Estados Unidos já não tinham um opositor da mesma ordem de grandeza. Consequentemente, deixaram de fazer sentido os objectivos que compunham aquela parceria: os Estados Unidos deixaram tendencialmente (e deixarão cada vez mais) de englobar a Europa como sua zona natural de defesa, ficando esta entidade por sua conta; americanos e europeus deixaram de ter um denominador comum que justificava uma identidade de políticas internas e externas: os interesses podem agora ser abertamente conflituantes. São estes os dados do problema que muita gente não quer ver. É isto que interessa.

4. É neste quadro que se integram as presidências de George Bush, Bill Clinton e George W. Bush. Qualquer um dos três conduziu (com uma ordem crescente de evidência) a política externa americana de acordo unicamente com o melhor interesse americano. Mais: fizeram-no não só em função do melhor interesse americano, como o modus operandi foi definido pelos americanos sem complacência para com as pretensões europeias. Refira-se que a Europa se coloca, clara e deliberadamente, nesta posição. Basta olhar para o conflito nos Balcãs. Foi resolvido pelos americanos, no consulado de Bill Clinton, a pedido da Europa, quando e do modo que se revelou mais vantajoso para os Estados Unidos. E, da mesma forma, entre outros, Bill Clinton bombardeou, sem dar cavaco, o Afeganistão e o Sudão. E já antes, no Golfo, George Bush tinha tratado de Saddam Hussein como bem lhe aprouve.

5. Dito isto, compreende-se a presidência de George W. E decerto se compreenderá que qualquer presidente americano que aí venha não fará diferente. Porque em causa não está a bondade do carácter de fulanos A e B; nem a simpatia que ambos despertam; nem a sensibilidade que um ou outro poderão demonstrar para com certa situação -- como se uma política externa como a americana pudesse ser ditada por tais coordenadas. Em causa estão as variáveis do problema, que são as mesmas: os Estados Unidos são a única potência com capacidade para projectar força, não tendo pejo em fazê-lo quando isso serve os seus interesses. E não há qualquer alteração do enunciado com Kerry.

6. Disse Robert Kagan, na obra acima indicada, que os Estados Unidos vivem num mundo Hobbesiano, ao passo que a Europa vive num mundo Kantiano. Ou seja, para os Estados Unidos as relações internacionais são feitas segundo o critério da lei da força, enquanto que para a Europa existe uma ordem jurídica internacional a que importa obedecer. O problema é que só a Europa vive nesse mundo, e só vive nesse mundo porque durante 50 anos viveu debaixo do tal chapéu-de-chuva americano. Ou seja, como durante 50 anos a Europa foi poupada a qualquer esforço bélico significativo (o trabalho sujo era para os americanos) e como na Europa floresceu o projecto europeu, criou-se uma arreigada convicção de que os conflitos devem ser dirimidos apenas com recurso ao ordenamento. Não é de estranhar que a argumentação europeia vá neste sentido: não tendo qualquer projecção militar, só lhe resta desviar a discussão para um campo onde ainda conte para alguma coisa. E são ilucidativas da incapacidade europeia para ler o presente as afirmações dos seus líderes de que é preciso «construir uma nova ordem mundial». Meus caros, ela já existe. Desde 1989.

7. Óbices: vários. Em primeiro lugar, ao redor da Europa existe um mundo com outros valores: e aí a baioneta conta mesmo. A Europa não tem baioneta; e a Europa manda cada vez menos. Em segundo lugar, o tal ordenamento tão acarinhado pela Europa é disfuncional. Foi concebido para um mundo que já não existe: o mundo da Guerra Fria. As instituições existentes não têm aptidões funcionais para desempenhar os papéis que se lhes entrega; nem têm o suposto carácter democrático que está na base do louvor que lhe é tecido.

8. O que deve, pois, ser o futuro? Em primeiro lugar, importa ter presente que os Estados Unidos são só mais um dos agentes da nova ordem mundial. É certo que partilham os nossos valores culturais e políticos -- e isso não é pouco, nos tempos que correm. Mas é só mais um agente, há outros. Temos de estar preparados para lidar com todos eles nos termos em que eles entendem. Além de sermos vistos como um parceiro económico essencial, temos de nos recolocar como um agente político e militar incontornável. Como sugerem Kagan e Michael Walzer (A Guerra em Debate), a Europa tem algo de muito bom entre as mãos: este mundo Kantiano é, de facto, uma coisa boa. Mais racional; causador de menos sofrimento. Mas não podemos, sob pena de colocarmos em risco o nosso futuro, utilizá-lo com todos os nossos vizinhos: apenas com aqueles que estiverem dispostos a usar essas mesmas regras. Para os demais, teremos de recorrer aos métodos antigos. É um retorno parcial a um mundo que ficou lá bem atrás: é uma espécie de retorno ao jus gentium romano. É este o desafio europeu; é um desafio de mentalidades.

9. Em suma, o resultado das eleições é perfeitamente indiferente para o objectivo europeu de mudar o mundo em que vivemos. Esse, já mudou em 1989. Se o queremos mudar para algo diferente, somos nós que temos de ter essa iniciativa. A bola está do nosso lado. Temos de deixar de ser reacção: temos de passar a ser acção.


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