Peço a Palavra
sexta-feira, outubro 15, 2004
 
Falência da legitimidade democrática
1. Um governo democrático conhece duas fontes de legitimação (preferencialmente cumulativas) para o exercício dos poderes públicos: a legitimidade representativa; e a legitimidade de exercício.

2. A legitimidade representativa é a admissibilidade, determinada pelo resultado do voto, de um decisor público tomar decisões que afectam toda a colectividade. Num plano eminentemente teórico, o voto constitui uma declaração de constituição de mandato político: ao votar, o cidadão escolhe quem o representa e quem deverá decidir no seu melhor interesse. A justificação e a validade da actividade realizada por esse mandatário reside, pois, na escolha popular e no depósito da confiança colectiva: o decisor decide porque, muito simplesmente, a maioria determinou que ele decidisse. É uma legitimidade formal.
Reflexamente, se as decisões públicas são tomadas por agentes investidos de poderes públicos na sequência de outro processo que não o da escolha colectiva da maioria da população, essas decisões têm outro cariz que não o democrático -- terão, na verdade, o cariz equivalente ao método que presidiu à sua escolha.

3. A legitimidade de exercício é um conceito moderno. Consiste na admissibilidade de um decisor público tomar decisões que afectam toda a colectividade, determinada pela própria natureza da decisão, a qual se deve conformar com os princípios que enformam o estado de direito democrático. Tomemos um exemplo clássico fornecido por Popper: o decisor público ordena que os impostos sejam todos e apenas pagos por uma minoria da população (nomeadamente, pelos cidadãos que tenham menos de 1,60m) (Open Society and Its Enemies). O que está em causa já não é saber qual a fonte de autoridade do decisor, mas sim saber se a decisão em si poderia ser tomada pela maioria da colectividade sem que tal significasse a falência da própria colectividade e do sistema democrático. É que, no caso acima apontado, a consequência previsível seria a cisão da colectividade: os cidadãos com menos de 1,60m abandonariam a dita colectividade, excluídos que foram de nela participar em condições de justiça e igualdade. É uma legitimidade substancial.
A legitimidade de exercício surge também como coordenada primordial do funcionamento da máquina governativa: nas palavras de Hayek, «não são os poderes efectivamente detidos pelas assembleias democráticas, mas os poderes que estas atribuem aos administradores investidos na prossecução de determinados objectivos que constitui hoje o perigo à liberdade individual. Tendo concordado que a maioria deve emanar normas às quais obedeceremos na busca dos nossos objectivos individuais, encontramo-nos mais e mais sujeitos às ordens e à arbitrariedade dos seus agentes» (The Constitution of Liberty, p. 116).
Também aqui reflexamente, se as decisões públicas que são tomadas têm outra natureza que não compatível com o regime democrático, então a legitimidade para as tomar terá o cariz equivalente à natureza dessas decisões.

4. O partido que sustenta o presente governo constitucional foi objecto de sufrágio directo. Mas, na verdade, a vontade dos cidadãos no momento do voto não foi formada no pressuposto fáctico de ser este o Presidente do partido e estes os membros dos respectivos órgãos partidários. Ora, bem se vê, quando se escolhe um mandatário, escolhe-se um indivíduo -- pelo que sempre estará aí questionada a legitimidade representativa. Mas mesmo que se entenda que pelo voto se escolhe um grupo de onde poderá sair um indivíduo que será o mandatário, sempre se deverá conceder que esse grupo não é, definitivamente, aquele que actualmente compõe a cúpula do maior partido do Governo.
Temos, assim, uma situação que, não sendo de outra natureza que não a da legitimidade representativa, está precisamente na sua fronteira. É uma situação de grande fragilidade. E que carece, decisivamente, de ser amparada pela legitimidade de exercício.

5. Façamos um breve apanhado dos factos mais recentes.
A gestão da educação nacional, que o Estado Português assume como sua tarefa, está a ser realizada no campo da arbitrariedade. No que concerne à colocação dos professores, o certo é que a mesma não foi realizada de acordo com as regras previamente definidas -- em bom rigor, foi feita de forma verdadeiramente caótica. O grau de certeza criado no campo da autonomia privada foi zero.
Um Ministro do Governo interpela e invectiva um cidadão que profere opiniões pouco abonatórias acerca do trabalho daquele órgão. Apela à intervenção de uma autoridade pública para averiguar da correcção dessas opiniões. O dito cidadão é afastado do local a partir de onde emitia a sua opinião. Esta factualidade -- sem entrar, portanto, na questão de saber se foram feitas pressões directas e subreptícias, as quais já seriam do foro criminal -- é quanto baste para concluir que o Governo entra no campo da arbitrariedade. Naturalmente, qualquer cidadão sentir-se-á constrangido em proferir a sua opinião se souber que, se o não fizer de modo suficientemente abonatório para o Governo, este poderá lançar contra si os instrumentos coercivos que tem ao seu dispor. O grau de certeza criado no campo da autonomia privada foi zero.
Finalmente, as notícias vindas hoje a lume indicam que a proposta de Orçamento do Estado prevê a extinção de benefícios anteriormente atribuídos aos cidadãos. Sem que nada o fizesse prever. Sem que aos cidadãos fosse dada a possibilidade de alterar as escolhas anteriormente feitas sobre as opções tomadas pelo mesmo Estado. O grau de certeza criado no campo da autonomia privada é zero. Mas mais: consta que se pretende inverter o ónus da prova em matéria tributária, o que, em síntese, obriga o contribuinte a realizar, perante o Estado, uma probatio diabolica: provar que não auferiu os rendimentos que o agente do Estado supõe que ele auferiu. Ora, as normas segundo as quais o cidadão tem de provar, por via regra, a sua inocência perante a Administração e de que, em consequência, o Estado funciona no pressuposto de que pode actuar livre e injustificadamente sobre o cidadão são o arquétipo do estado totalitário. São, pura e simplesmente, o abandono da Rule of Law e do Due Process of Law, os quais constituem as pedras basilares de uma sociedade democrática (F.A.Hayek, The Road to Serfdom). E chamando uma vez mais Hayek, «se algo foi demonstrado pela experiência moderna a este respeito, é que, uma vez que amplos poderes coercivos são atribuídos a agências governamentais para fins específicos, esses poderes não podem ser efectivamente controlados pelas assembleias democráticas. Se estas não determinam os meios da sua utilização, as decisões dos seus agentes serão mais ou menos arbitrárias (The Constitution of Freedom).
O presente Governo atingiu, absolutamente, o ponto de inexistência de legitimidade de exercício.

6. Não reunindo qualquer legitimidade de exercício e não dispondo de uma sólida legitimidade representativa, a permanência em funções deste governo apenas se justifica pelo revestimento de outro tipo de legimitidade, necessariamente não democrática.

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