Peço a Palavra
quinta-feira, outubro 28, 2004
 
Uma janela aberta para o PR
1. Marcelo Rebelo de Sousa deixou de exercer um cargo opinativo num meio de comunicação social. Especulou-se, de imediato, que a cessação daquele espaço crítico poderia ter resultado de influências de agentes governativos e/ou de uma influência exercida pela administração da TVI (que não pretenderia ser prejudicada em certos negócios envolvendo o Governo).

2. Em face da gravidade das afirmações, duas entidades iniciaram inquéritos destinados a apurar a verdade dos factos. A Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) fê-lo de seguida, ordenando a inquirição de todos os envolvidos no caso. Depois, a Assembleia da República fez o mesmo. Simplesmente, entendeu que não seria necessário ouvir todas as partes. Entendeu não ser necessário, por exemplo, obter as impressões que o alegado censurado teria recolhido do caso.

3. No decurso do inquérito decorrido na AACS, o alegado censurado confirmou que «sim, senhor, efectivamente fui censurado porque as minhas críticas incomodavam o Governo e, consequentemente, podia a TVI ser prejudicada».

4. Em circunstâncias normais, compete à Assembleia da República averiguar da veracidade de acusações concretas de desvio de poderes que pairem sobre o Governo -- no limite, de um seu Ministro e do seu Primeiro-Ministro. É uma decorrência impreterível do sistema de cheks and balances: é a própria razão de ser da AR. Uma assembleia de representantes popular não persegue outro desiderato principal senão o de fiscalizar, direccionar e autorizar a acção executiva. Nesta perspectiva, o inquérito aberto pela Assembleia da República não pode deixar de averiguar a totalidade dos factos relevantes, razão pela qual não se pode prescindir da inquirição da alegada vítima de censura.

5. Segundo consta nos meios de comunicação social e de acordo com as declarações proferidas pelo Presidente do Grupo Parlamentar do CDS-PP, partido do Governo, os termos do inquérito em curso na AR não serão alterados; ou seja, nem os agentes governamentais nem a alegada vítima serão inquiridas. Segundo parece, tal não se afigura como necessário.

6. Ora, se se antever do comportamento da maioria da AR que, deliberadamente, não será realizado um inquérito que incorpore factos e meios probatórios que já são do conhecimento público; que se encontra, por esse motivo, em preparação uma decisão necessariamente eivada de autismo; então só resta concluir que a AR se encontra impedida de exercer as suas funções fiscalizadoras da actividade executiva para as quais foi eleita e para as quais está constitucionalmente investida de poderes. E se assim é, no cenário que se ergue neste preciso momento, só resta ao Presidente da República dissolver imediatamente a AR e convocar eleições antecipadas para salvaguardar a legitimidade democrática do regime.

Comments:
Para que serve a AACS se a AR tem de fiscalizar tudo e todos e imediatamente? Para que servem os tribunais administrativos se só a AR pode fiscalizar o executivo? A AR fiscaliza com base na maioria parlamentar que nomeia o executivo ou, neste caso, só vota a minoria? Inquéritos parlamentares sérios ou armas de arremesso?
É só para fechar a janela que faz corrente de ar.
 
Os tribunais fiscalizam a legalidade da actividade administrativa da Administração Pública. Estão impedidos de fazer a fiscalização política da actividade do Governo.
A AACS fiscaliza (?) a actividade dos operadores de comunicação social.
Só à AR e ao PR compete fazer a fiscalização política da actividade do Governo. São sedes diferentes. Uma jurisdicção não inibe outra de actuar.
 
Tiago, desculpa-me a insistência, mas não percebo como é que desvio de poder e violação da liberdade de expressão não são ilegalidades. Responsabilização política? Concerteza. O que é pior para o Governo, ter uma entidade reguladora (neste caso a AACS) a dizer que o Governo violou a lei e cometeu um desvio de poderes ou ter um inquérito parlamentar que, pela sua natureza, concluirá aquilo que a maioria parlamentar determinar que tem de concluir? O PR dissolve a AR porque não concorda com a actuação da maioria no Parlamento sem ter provas de que ouve uma ilegalidade ou desvio de poderes? Estou confuso...
 
Vejamos: o mesmo facto é susceptível de ser configurado como relevante à luz de diversos parâmetros.
Tomemos um facto hipotético «A». À luz do ordenamento jurídico-financeiro, é um caso de alcance: há responsabilidade financeira; é julgado pelo Tribunal de Contas. À luz do ordenamento jurídico-administrativo, o facto é um acto administrativo nulo: é julgado pelo Trib. Administrativo de Círculo. E pode ainda ser uma contra-ordenação ou uma infracção disciplinar: é julgado por um Tribunal Criminal ou pelo próprio empregador. E, finalmente, é um acto praticado por agente de confiança política ou a mando de um agente político: há responsabilidade política.
Ou seja, o mesmo acto pode dar origem a várias consequências, todas elas paralelas e não necessariamente auto-excludentes.

Vertendo estas considerações para o nosso caso:
Esta matéria (a qual não sei se é verdade, atenção!) pode ser um acto administrativo eivado de ilegalidade (e o Tribunal Administrativo toma conta do assunto) e uma eventual situação que mereça a intervenção da AACS. Mas é também um episódio susceptível de merecer responsabilização política, e daí que deva ser investigado pela AR.

Eu não digo que deve a AR ser dissolvia porque Marcelo foi mesmo censurado. Não sei se foi. O que sei é que há a suspeita. Mais: há a queixa que vai directamente contra o Ministro. E compete à AR investigar a dimensão política do evento (e se descobrir matéria do domínio da ilicitude, remeter o processo às autoridades competentes). Se a AR não for possibilitada de exercer as suas prerrogativas, aí é que deve haver dissolução.

Numa palavra: não há «litispendência».
 
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