quarta-feira, junho 30, 2004
Turquia
Um assunto que me causa alguma preocupação é a relação entre a União Europeia (UE) e a Turquia.
À Turquia tem sido vedado o acesso à União Europeia com o fundamento formal de que não é um Estado que partilhe uma natureza idêntica à dos seus Estados-Membros. Porque a democracia não está solidificada, porque o poder militar tem um claro ascendente sobre o poder civil, etc. Parece-me evidente que as verdadeiras razões são outras.
Em primeiro lugar, a Turquia é um colosso populacional e militar que, uma vez na União Europeia, não poderia deixar de se colocar, imediatamente, num plano de igualdade com as grandes nações. E estas não desejam, como é evidente, ter um novo pólo político com quem tenham disputar o seu poder dentro da união, mas sim aumentar o número de países que poderão engrossar a sua própria esfera de poder.
Em segundo lugar, e talvez mais importante, parece-me relevar o facto de a Turquia ser um Estado cuja população professa a religião islâmica (ainda que seja laico).
Isto é um erro -- e é um erro grave. E é grave por esta última razão de exclusão.
Ao contrário do que é comum pensar na nossa sociedade ocidental, o mundo islâmico é um mundo heterogéneo -- e só estou a falar a nível do pensamento político-cultural. Muito sucintamente: desde o fim da II Guerra Mundial que a sociedade islâmica (e não apenas árabe) tem sido atravessada por um processo de reequacionamento do seu papel no mundo. O mundo islâmico conheceu uma época áurea, que entrou depois longamente em declínio até chegar ao ponto de ser uma verdadeira e negligente marginalidade no palco dos acontecimentos globais. Isto criou um sentimento de decepção na sua cultura.
Contra esse sentimento surgiu o tal processo de reforma. Ora, a heterogeneidade reside aqui. Porque várias foram as posturas reactivas adoptadas.
Grosso modo, uma foi verdadeiramente integrista, postulando a adopção da literalidade do Corão (Whabbismo, por exemplo), que é mais ou menos o que vigora na Arábia Saudita ou no Iémen; outras, propuseram um passo ainda mais em frente e, já fora do verdadeiro Islão, invocaram as suas regras para praticar um ultra-integrismo (a Al-Qaeda é só um exemplo), deixando o Islão seu refém aos olhos do mundo e dos muçulmanos; outras houve que, seduzidas pelo liberalismo ocidental, ensairam a adopção liminar dos seus valores (caso do Xá do Irão, de Nasser e de Sadat) -- esta corrente faliu, praticamente; e, finalmente, outras pretendem acolher uma ocidentalização de valores, mas de forma coerente com o Islão.
Interessa esta última. Os seus maiores arautos são o Ayatola Kathami (do Irão), o anterior primeiro-ministro na Malásia e o anterior Presidente da Indonésia Abdurrahman Wahid. Todos defenderam a abertura de canais de comunicação válidos e interessantes entre Islão e Ocidente. Mas, claro está, fazem-no com a salvaguarda de que o Islão é a pedra de toque das suas sociedades e que, portanto, todas as inovações têm de ser com ele compagináveis. Pergunto eu: poderia ser de outra forma? Penso que não. Não podemos pedir: dar-nos-emos todos muito bem se vocês deixarem de ser como são e passarem a ser como nós somos. Escuso-me de explicar a absurdidade do pedido.
Ora, a Turquia desde cedo -- por força de Ataturk -- se lançou também neste caminho. É um Estado laico -- tão ao nosso gosto -- onde os institutos jurídicos de origem ocidental têm sido genericamente recebidos. Outros melhor, outros pior -- mas estão lá. O padrão mental dos seus cidadãos não é distante do nosso.
Colocarmos como condição de adesão da Turquia uma adesão total ao padrão cultural dos países que compõem a UE é, no fundo, uma reformulação daquele pedido: podem entrar, na medida em que sejam exactamente iguais a nós.
Como já se antevê, a Europa está a armadihar o seu próprio futuro -- já para não dizer que essa posição é disparatada porque os dois lados partilham, ao contrário do que julga a opinião comum, o mesmo complexo normativo moral.
É que, ao fazê-lo, a Europa está a fechar a porta àquela que é a corrente política e intelectual que procura conduzir, de forma sustentável, o Islão de novo para o palco dos acontecimentos globais. A corrente que permitirá converter o Islão de vizinho hostil em parceiro pacífico. E, desse modo, está causar a falência dessa aposta.
Falindo essa corrente -- que até é a mais amplamente sufragada pelos muçulmanos --, temo bem que o ganho se repercuta, unicamente, nas demais correntes políticas e culturais que se discutem no Islão. Estamos assim a radicadizá-lo. E um Islão radical, que se estende do sul de Portugal ao sul da Rússia, passando pelo norte dos balcãs, está longe de ser um vizinho confortável.
Se abrirmos a porta à Turquia, permitindo (e contribuindo) para o seu desenvolvimento jurídico, económico e social, estamos a contribuir para que os muçulmanos de todo o mundo sejam confrontados com uma prova de que um Islão moderno é viável. Um Islão que não é prejudicado pelo Ocidente, mas sim que pode crescer e conviver com ele.