quarta-feira, junho 30, 2004
O vento que enche a vela
Há uns tempos escrevi aqui um texto sobre a lei do véu. Na ocasião, disse que depois falaria dos motivos que subjaz a esse tipo de legislação. É o que farei agora.
Esse tipo de medidas vem, supostamente, na linha de pensamento que se propõe criar um Estado verdadeiramente laico. Bom, não vou divagar sobre essa corrente ou elencar os seus méritos e deméritos. Mas convém sublinhar isto: bem vistas as coisas, esse tipo de medidas só aparentemente é que se enquadra nesse movimento. Porque os princípios que as baseiam são diferentes. Como diferentes são também os seus resultados.
Falemos claro: proibir um indivíduo, em qualquer local que esteja, de demonstrar a sua fé através do seu próprio vestuário não contribui para a laicização do Estado. O Estado é laico se o complexo normativo que o forma (e que o mesmo produz) for de natureza não religiosa. Ou seja, se for de natureza meramente civil (e uso aqui o termo civil no sentido que lhe dão, por exemplo, Locke, Hobbes, Bentham ou Mill e etecéteras; não no sentido jurídico).
Dito de outro modo, mais simples (ainda que conceptualmente deficiente): o Estado laico é, tão simplesmente, o oposto do Estado confessional. E o Estado confessional não é aquele em que a sua população professa necessaria e obrigatoriamente uma religião (embora também possa assim ser). O Estado confessional é aquele cujo complexo normativo é uma emanência do plano religioso. É o Estado em que as normas que regulam as relações entre cidadãos são de origem ou de inspiração religiosa; e o mesmo se dirá das normas estabelecidas entre o Estado e o indivíduo.
Evidente se torna o facto de, verdadeiramente, quase não haver Estados confessionais no mundo. Há, sim, Estados com resquícios de confessionalidade - em que há traços da sua natureza que são de origem ou inspiração religiosa.
Evidente é também que esse não é o caso francês. É um Estado totalmente laico. E indo agora ao ponto: em que medida é que a lei do véu decorre (ou corre) para a laicização do Estado? De modo nenhum, uma vez que não visa disciplinar a relação dos indivíduos entre si ou a relação destes com o Estado. Visa, tão simplesmente, disciplinar em que termos um indivíduo pode viver a sua fé.
E assim é, porquanto o motivo que preside a esta decisão é, unicamente, o entendimento que a profissão de uma fé obscurece a razão de um indivíduo e provoca entropias na vida em sociedade. Não é sequer, pois, um motivo ateu. É um motivo anti-religioso, fundado na incompreensão e na falta de respeito pelo campo de auto-determinação de que todos os indivíduos dispõem.