Peço a Palavra
sexta-feira, março 05, 2004
 
Seja um filósofo contemporâneo. Adira ao pós-modernismo. Escreva um livro em 10 passos!
Receita:
1.º - Escrever: "Vou fazer um bolo de chocolate";
2.º - Adicionar, de seguida, adjectivos e advérbios de uso arcaico e incoerente, colocando-os antes dos substantivos de molde a fazê-los assumir um conteúdo poético: "Vou fazer um íntimo e redutor bolo de insondável, absorto e megalómano chocolate";
3.º - Acrescentar vírgulas, parêntises e etecéteras: "Vou fazer um íntimo e (redutor) bolo de insondável, absorto (e -- será? -- megalómano) chocolate";
4.º - Substituir o predicado por outro mais rebuscado: "Demando a tarefa de cogitar e enformar um íntimo (e redutor) bolo de insondável, absorto (e -- será? -- megalómano) chocolate";
5.º - Introduzir, a despropósito, contraditórios estados de espírito que não transcendam o narrador: "Demando, desassombrada mas maquinalmente, a tarefa de cogitar e enformar um íntimo (e redutor) bolo de insondável, absorto (e -- será? -- megalómano) chocolate";
6.º - Dar ao complemento directo forma metafórica impenetrável, inclusivamente com recurso a sinónimos imprecisos e vagos: "Demando, desassombrada mas maquinalmente, a tarefa de cogitar e enformar uma íntima (e redutora) forma de insondável, absorto (e -- será? -- megalómano) deleite";
7.º - Fazer uma referência, subtil, a um filósofo e/ou a uma corrente filosófica: "Demando, desassombrada mas maquinalmente, a tarefa de cogitar e enformar, a partir de uma intangível Ideia pura e não revelada, uma íntima (e redutora) forma física de insondável, absorto (e -- será? -- megalómano) deleite";
8.º - Retirar a referência a um sujeito preciso, conferindo-lhe o carácter de uma regra universal: "Demandar, desassombrada mas maquinalmente, a tarefa de cogitar e enformar, a partir de uma intangível Ideia pura e não revelada, uma íntima (e redutora) forma física de insondável, absorto (e -- será? -- megalómano) deleite";
9.º - A essencial transdiciplinariedade, claro, que entrecorta todo o raciocínio: "Demandar, desassombrada mas maquinalmente, a tarefa pedagógica de cogitar e enformar, dentro de um quadro parametrizador da compatibilidade da dignidade da existência com o locus ambiental, a partir de uma intangível Ideia pura e não revelada, uma íntima (e redutora) forma física de insondável, absorto (e -- será? -- megalómano) cosmológico deleite";
10.º - A cereja em cima do bolo é, como é óbvio, uma citação de um qualquer autor (de preferência, absolutamente fora do contexto), o que acrescenta o insuprível toque de argumento de autoridade: "Demandar, desassombrada mas maquinalmente, à sombra de Aristóteles, porque «não existe nada que seja permanentemente agradável, pois nossa natureza não é simples», a tarefa pedagógica de cogitar e enformar, dentro de um quadro parametrizador da compatibilidade da dignidade da existência com o locus ambiental, a partir de uma intangível Ideia pura e não revelada, uma íntima (e redutora) forma física de insondável, absorto (e -- será? -- megalómano) cosmológico deleite".

Resultado:

"Vou fazer um bolo de chocolate" = "Demandar, desassombrada mas maquinalmente, à sombra de Aristóteles, porque «não existe nada que seja permanentemente agradável, pois nossa natureza não é simples», a tarefa pedagógica de cogitar e enformar, dentro de um quadro parametrizador da compatibilidade da dignidade da existência com o locus ambiental, a partir de uma intangível Ideia pura e não revelada, uma íntima (e redutora) forma física de insondável, absorto (e -- será? -- megalómano) cosmológico deleite".

Helás! Conseguiu fazer uma afirmação perfeitamente despedida de sentido, obscura, irracional, sem qualquer espécie de demonstração, pomposa e sonante! Aplique a todo o livro. E pronto! You're a regular Hegel!

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