quarta-feira, fevereiro 25, 2004
O muro em França
A «Lei do véu» merece um sério debate. E esse debate pode ter vários objectos de incidência: podemos discutir os motivos que presidiram à sua prolação; podemos discutir o seu conteúdo normativo; e podemos discutir o seu alcance.
Mais tarde irei aos motivos que conduziram o Estado francês a produzir tal instrumento. Mas, para já, penso ser mais relevante demonstrar o efeito nefasto que esta novidade produzirá -- e a árvore conhece-se pelos seus frutos...
Esta lei é um absurdo, desde logo, no seu conteúdo normativo. Vejamos.
A «Lei do véu» impõe, grosso modo, que um indivíduo não possa demonstrar a sua religiosidade por intermédio de sinais exteriores. Mais: que esses sinais exteriores não podem ser exagerados.
Ora, pergunto eu: o que é um sinal exagerado? Um crucifixo maiorzinho? Um véu mais escuro? Qual é o critério de desadequação com um Estado laico? Como perguntava não sei quem, «e se for moda usar véu»? Ferra-se também na cadeia? Enfim, ambiguidades que, nas mãos de zelotas laicizadores, proporcionará os maiores atrofios da esfera incomprimível de individualidade.
Ora, pergunto eu: o que é um sinal exagerado? Um crucifixo maiorzinho? Um véu mais escuro? Qual é o critério de desadequação com um Estado laico? Como perguntava não sei quem, «e se for moda usar véu»? Ferra-se também na cadeia? Enfim, ambiguidades que, nas mãos de zelotas laicizadores, proporcionará os maiores atrofios da esfera incomprimível de individualidade.
Para este efeito, é útil recordar o que se passou no Estado Novo. Olhando para a Constituição de 33, ninguém diria que Portugal viveu num Estado ditatorial. Não está lá a compressão do direito de voto; da liberdade de expressão. Não está lá tão-pouco a PIDE ou a censura. A Constituição de 33 era gravosa, no entanto, para os cidadãos portugueses, não pelo que determinava ou pelo que dela resultava expresso, mas por tudo aquilo que a sua dinâmica permitia encapotadamente. Aqui, temos exactamente o mesmo. Mesmo boçal nos seus termos, esta lei é grave por tudo aquilo que vai deixar nas mãos da Administração.
Adiante. Vamos agora ver os frutos que esta lei dará.
Esta lei determinará a criação, na sociedade francesa, de uma multiplicidade de muros segregacionistas idênticos ao muro que Israel ergue, neste momento, na Cisjordânia. A única diferença é que no Médio Oriente o muro é material, de um betão inolvidável. Em França, teremos um muro invisível e subtil. E que não pode ser derrubado sem que se derrube, mais cedo ou mais tarde, o próprio Estado que o ergueu. Sigam-me o raciocínio.
O cidadão A, muçulmano, tem duas filhas. Usam véu. Querem ir à escola. A escola pública não deixa que elas usem o véu. Elas não prescindem do véu. Mudam de escola. Pura matemática. Ora, para que escola irão elas? Para uma escola muçulmana, na qual o uso de véu não seja uma condição de extraterritorialidade.
Da mesma maneira procederão todos os que, vivendo a sua fé, não consentem que o Estado erga um obstáculo à sua plena vivência quotidiana e ética. Pensarão: não podemos mudar o ditame estadual; mas podemos viver numa alternatividade viável e consentânea com os nossos padrões morais.
Com o futuro virá, naturalmente, o alargamento do campo de segregação: escolas para muçulmanos, escolas para judeus, escolas para católicos, escolas públicas; hospitais para muçulmanos, hospitais para judeus, hospitais para católicos, hospitais públicos; cemitérios para muçulmanos, cemitérios para judeus, cemitérios para católicos, cemitérios públicos; bairros para muçulmanos, bairros para judeus, bairros para católicos, bairros para os restantes. Findo o processo, teremos uma sociedade plenamente guetizada: várias populações vivem contiguamente e em estanquecidade, inevitavelmente numa má relação de vizinhança, em que só uma tem a preferência da Lei e do Estado.
«Eu vivo na minha casa. Tu vives na tua. Tu não metes o bedelho na minha. Eu não meto o bedelho na tua. A minha pode arder que não tens nada a ver com isso. A tua pode explodir que eu daqui não me mexo.» Isto não é respeito. É cegueira. Não é sequer a defesa de um Estado democrático. A democracia é um sistema político que tem como propósito impedir o exercício de uma tirania. Seja essa tirania exercida por um tirano ou pela maioria da população. Exemplo: se a maioria votar: «a minoria paga sozinha todos os impostos que houver para pagar», estamos perante uma decisão democrática? É claro que não. A luta contra a arbitrariedade e a aceitação da diferença pacífica, que não obste à própria sobreviência do regime democrático, é o desiderato de uma sociedade aberta. O Estado molda-se aos cidadãos e não o contrário. E foi esse limite que foi aqui ultrapassado.