Peço a Palavra
terça-feira, março 02, 2004
 
Evoluir
Disse o : "A economia é o motor da história". FALSO! E por três tipos de razões.

Primus, o que é isso de "História" de que fala o Zé? Encher a boca, arregalar os olhos e dizer arrastada e sonoramente: "A Históóóriaaa" -- eis uma prática ainda preocupantemente comum.
Ora, não existe tal coisa como "a História". Ou melhor dito: ela existe; simplesmente é impossível concebê-la. A "História" (sem mais) é o registo de todos os acontecimentos passados. Todos. Sem excepção -- desde a tomada do poder num país que faça esquina com o Índico, há 2000 anos, até à minha última ida à retrete. Ora, não é possível (re)construir e ler a "História" -- a verdadeira "História" --, pelo simples motivo que ela nunca poderia ser redigida. É fisicamente impossível. Por esse motivo, falacioso é admitir o conceito "História" tal como é fornecido pelo Zé. Porque implica dizer que existe esse registo aproximadamente científico e que é possível imputar uma causa comum a todos esses efeitos. (E, apenas em abono da discussão, mesmo que tal fosse possível, não vejo como é que a economia possa ser o motor da minha última ida à casa de banho.)
O que o Zé quer verdadeiramente dizer é que a "História do Poder" -- ou, mais precisamente, a "História do Poder Político" -- será absolutamente condicionada pelo fenómeno económico. Ora, tomar a "História", no fundo, apenas como "História do Poder Político" é perigosamente redutor. E isto não é dispiciendo: é que isso significa obliterar todo o remanescente da dimensão da existência humana, que é, até, a maior parte do bolo. De facto, nesta perspectiva, a capacidade de realizar um raciocínio transcendental, que supere o estômago e o falo, pura e simplesmente não existe. Este ponto de vista implica aceitar que toda -- TODA!!! SEM EXCEPÇÃO -- a acção humana é determinada por uma lógica de poder e que todas as outras vertentes da existência humana não sopesam no momento da decisão. Importa admitir que o Homem, momento a momento, é condicionado, apenas e tão-só, pela sua sobrevivência, pelo seu instinto sexual e pelo instinto bélico.

Em segundo lugar -- e tendo concluído que não estamos a falar de "História" mas sim de uma sua pequena parte, a "História do Poder" --, resta limpar os resquícios de Hegelianismo e Marxismo. É que a História -- seja ela qual for -- não tem motor. Quanto mais tempo teremos de esperar para enterrar o Historicismo?
A evolução humana não está condicionada. O futuro é tomado nas mãos da Humanidade. Não existe uma entidade ex machina que a domine. Não podemos extrair, de uma leitura da "História" (?), um qualquer factor comum que a perpasse. Não podemos dizer com rigor científico: "foi este factor que levou que o facto A sucedesse ao facto B". Apenas podemos supor. E muito menos podemos aplicar essa lógica a TODOS os factos, encontrando em TODAS as relações causais o mesmo agente causal!!
Ademais, volvidos 200 anos desde o nascimento do Historicismo, onde está a sua demonstração? Não há! Continuamos no domínio das assumptions! Inteira razão tem, pois, Popper, quando diz que Hegel era um aldrabão e um fala-barato: limitou-se a fazer uma profissão de fé, macaqueando-a de rigor científico (com uma dialética irracional...).
Não existe um padrão comportamental a que possamos apontar o dedo e dizer: toda a evolução é determinada por esta causa. Não há nada que me possa dizer o que vai suceder daqui a cinco minutos, quando afixar o post. E isto é incontornável.
Mesmo o agente causal que o Zé assume é muito discutível: é que, segundo me parece, o Zé trata o fenómeno económico como um fenómeno com carta de alforria relativamente à globalidade do comportamento social humano. Não é assim. A economia não é mais do que a vivência social da Humanidade na busca de meios de sobrevivência (primeiro) e de melhoria das condições de vida (depois). Não é uma essência autonomizável e que explique, enquanto lógica reguladora e mecanizada, a evolução humana. O facto de estar cientificamente autonomizada para efeitos de estudo não me parece condição suficiente para a levar ao pódio de "motor do mundo".

Por último, aqui chegados, resta refutar, dentro da lógica historicista do Zé, a concepção de que a esta sub-espécie histórica se processa inapelavelmente ao ritmo do fenómeno económico.
Em bom rigor, nem precisaria de a refutar. E não preciso porquanto ela é apenas uma crença indemonstrada. E esse seria o meu primeiro argumento.
Em todo o caso, sempre poderei dizer que ela não só nunca foi como nunca poderia ser provada. E não o poderia, uma vez que é inegável que o caminho da Humanidade foi, é e continuará a ser trilhado também em função de valores não-económicos. Ao afirmar que há um único factor preponderante que condiciona a evolução histórica, o Zé está a dizer que só um motivo económico permite explicar a transição do facto A para o facto B (que lhe sucede no tempo). Mais, diz que esse agente causal está sempre presente na transição de todos os factos para os respectivos factos subsequentes. Mais uma false assumption. É que, ao fazer a leitura e hermenêutica da História, o Zé tem de reconhecer que há quem busque um cargo político não pelo poder que ele confere, mas pelo serviço que a ele se pode prestar. Toda a decisão humana num contexto de poder pode ser feita em função de outros critérios que não económicos. O Zé tem de reconhecer que a existência de valores como humanismo, altruísmo e amor ao próximo enquanto realidades não-económicas foram e são determinantes no funcionamento do mundo e na criação de factos e fenómenos sociais e políticos. Sobretudo, não se pode reconduzir a existência humana à sua existência política -- e muito menos à narrativa da luta de uma elite pelo poder.

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