Peço a Palavra
segunda-feira, abril 12, 2004
 
Da defesa ao ataque
Pacheco Pereira escreveu, não sei se no blogue se no Público, que a Al-Qaeda é apenas a face visível e violenta de uma proposta niilista para o mundo. Em resumo, que o seu único intuito se traduz na destruição do mundo ocidental -- das suas instituições, em primeiro lugar, e de todos os seus valores, se possível. E que, por isso, o combate a travar é contra uma espécie de niilismo religioso.
Ora, parece-me que esta análise não é totalmente certa. E sobretudo que, ao ficar por aqui, não está completa.

Quando penso na Al-Qaeda, vem-me à cabeça -- salvo seja -- o ébola. O ébola é um agente viral temível, que mata o seu hospedeiro em poucas horas.
Mas, coisa singular!, o ébola nunca se propaga para além de um certo círculo. O pânico com que reaparece é directamente proporcional à rapidez com que se esvanece. A que se deve isto? Dever-se-á aos esforços de contenção das autoridades? Não, de todo. O Zaire e o Congo nunca foram capazes de providenciar qualquer espécie de quarentena eficaz -- e tanto assim é que é comum assistir a migrações fantásticas nestas ocasiões, onde concerteza se incluirão portadores da doença.
Este fenómeno de contenção é um fenómeno de auto-contenção. Ou para ser mais rigoroso: de auto-destruição. O que se passa é que o ébola, enquanto vírus, precisa de um hospedeiro (vivo) para sobreviver, para se reproduzir e para se transmitir. Porém, o ébola mata a uma velocidade tal que não tem tempo para se reproduzir dentro do organismo e de se transmitir a novos hospedeiros. Ou seja, mata depressa demais para poder, ele próprio propagar-se e sobreviver enquanto espécie.

Com a Al-Qaeda temos um fenómeno com contornos semelhantes. Porque a sua fúria destruidora, ainda que espectacular e sensacional no imediato, é a causa da sua morte a médio prazo.

Creio que não se pode dizer que a acção islâmica em causa é um niilismo. O que será correcto dizer é que na mensagem da Al-Qaeda existe uma proposta de cariz revolucionário, alcançável com recurso a métodos drásticos, que pressupõe a redução do mundo ocidental a um nada. Mas esse parece ser apenas um passo do processo gizado pelos terroristas e não o culminar do mesmo.
O discurso da Al-Qaeda parece ser o resultado de uma amálgama de uma certa interpretação do Islão, do apelo a razões de pendor nacionalista e, não menos importante, da relevância de um sentimento de alienação produzido pela modernidade nas pessoas -- um sentimento ludista. O seu fito é, assim, mudar o mundo através da supressão dessa modernidade tecnológica e ética, substituíndo-a por um retorno a supostos valores primitivos do Islão, enquadrado na independência e no ascendente dos países árabes muçulmanos.
Daí que se possa dizer que o discurso da Al-Qaeda é de natureza «revolucionária» e de substrato «religioso». É que, em primeiro lugar, a sua proposta é a da quebra integral dos valores tradicionais e a sua subsequente substituição por outros inteiramente novos e sufragados apenas por uma minoria. Em segundo lugar, o motor desse movimento é uma crença disseminada naqueles valores.

É este discurso que «legitima» a existência da Al-Qaeda e o exercício do seu poder -- um poder, portanto, revolucionário. É daí que advém a «legitimação» dos terroristas perante os seus apoiantes e simpatizantes. É essa noção que justifica as suas acções. É o fim que justifica os meios.

Ora, o poder revolucionário é sempre transitório: não há revoluções para sempre. Diz-nos a experiência humana que ou o ímpeto revolucionário vence e se consolida na sociedade, passando a revestir-se como um poder tradicional -- instituído como regra, tranformado em Lei subscrita pela maioria, e fundado no costume --; ou passa a ser um poder nú, ou seja, um poder exercido apenas em função da simples vontade de um homem ou homens, sem outra justificação que não seja a satisfação das suas necessidades. Só aqui chegados é que poderemos dizer que a acção da Al-Qaeda será niilista: porque não há verdadeiramente nada que a justifique.

Creio que será este o destino do poder da Al-Qaeda. A sua capacidade de se impor num qualquer Estado (árabe ou não-árabe) é nula. Apenas o conseguiu no Afeganistão e com os pobres resultados verificados. Os talibãs não lograram obter o «favor» da população: era notório que afegãos e afegãs viviam sob uma repressão brutal que conduziria, inexoravelmente, ao fim do regime.
Do mesmo modo, a Al-Qaeda não conseguirá impôr o seu ponto de vista em nenhum outro Estado árabe. Desde logo, porque esses Estados são iguais vítimas da Al-Qaeda; por outro lado, porque as populações desses Estados têm valores e estilos de vida -- mesmo nos países do integrismo muçulmano -- que não se compaginam com a cartilha dos terroristas. Importa deixar claro: os muçulmanos não se identificam (por via de regra) com a mensagem de violência assinada pelos terroristas; e não se identificam (de todo) com o modo de vida pretendido pela Al-Qaeda.
Mesmo no caso da Palestina e do Iraque -- agora elevados à condição de legitimação das suas acções --, quando os mesmos passarem a ser, novamente, Estados árabes independentes, a permanência da Al-Qaeda no seu panorama é perfeitamente inadmissível. Porque nem sunismo nem xiismo nem koraixismo admitem tais visões do Islão. A Al-Qaeda seria sempre uma entidade paralela e uma sombra às respectivas instituições nacionais, uma vez que nunca abdicaria do seu poder.
Tanto assim é que os militantes e operacionais da Al-Qaeda não são, por regra, recrutados nos países árabes. São recrutados nos países ocidentais, onde experienciam os tais sentimentos de alienação, de achincalho de orgulho nacional e de deterioração das suas condições da prática da sua religião.
É pois com um certo à-vontade que se pode dizer nunca a Al-Qaeda conseguirá transformar o seu poder de «revolucionário» em «tradicional».

Esse fenómeno será, até, potenciado pelo facto de o poder da Al-Qaeda ser fundado numa crença. É que esse poder é cansativo para os seus apaniguados. Todo o ser humano anseia por paz, prosperidade e segurança. Viver nesse constanto sobressalto gera cansaço, desilusão e enfadamento. Sobretudo, quando a sua acção é particularmente sanguinária, o que leva as pessoas a questionarem-se com uma ainda maior regularidade.

Este processo de transformação da condição do poder -- de «revolucionário» para «nú» -- importará uma diminuição da capacidade da Al-Qaeda. É que a aderência a tal causa apenas se justifica, como se disse, em virtude do seu substrato revolucionário e religioso. Ninguém -- ou quase ninguém -- adere a tais movimentos por força de um intuito destruidor patológico. E se assim é, a organização revolucionária em causa perde, desde logo, capacidade de angariar novos militantes e de segurar os já aderentes.

A perda operacional é, então, um passo lógico subsequente, que apenas termina na desagragação do movimento.
A organização começa a soçobrar para dentro de si. A força da Al-Qaeda reside na coesão e firme determinação. Essa força não advém da existência de meios de impôr uma vontade comum: vem da própria existência de uma vontade revolucionária comum de cumprir o seu suposto destino. No fundo, trata-se de cumprir a Lei porque se quer e não porque há uma autoridade que nos compele. Ora, perdendo-se o vigor revolucionário perde-se também a força interior, decorrente da legitimação para ordenar. Não havendo qualquer substracto justificativo, é fácil questionar ordens, promover cisões. É que se o que está em causa é a satisfação de vontades individuais -- e não a perssecução de um bem colectivo --, fácil é adivinhar que as diversas vontades individuais não coincidam ou até que conflictuem.

Por isso, para combater a Al-Qaeda devemos exercer dois tipos de acções: por um lado, um esforço policial que vise defraudar as acções terroristas; em segundo lugar, conduzir políticas internas que potenciem a auto-destruição do substrato religioso e o esvaziamento do poder revolucionário da Al-Qaeda. Nesse campo, a famosa «lei do véu» emerge como o típico exemplo do que não deve ser feito. A imposição de uma uniformidade de pensamento potencia, sim, a emergência de roturas e enfraquece o Estado democrático.

Para oncluir, devo chamar a atenção que o fenómeno aqui em causa não é absolutamente novo. De facto, em tudo igual foi o fenómeno do anarquismo, no séc. XIX. Era exactamente o mesmo. A brutalidade dos meios (a dinamite!); os alvos civis (os cafés eram a moda de então); o ensejo de pura e simplesmente destruir a sociedade ocidental; ideia da libertação do Homem como pano de fundo da acção destruídora e base de legitimação.
O que se viu, depois, foi a autoridade a controlar os anarquistas existentes: e o decréscimo progressivo de filiações, até que tais movimentos se transformaram, hoje, relíquias do passado.
O nosso papel é adoptar a mesma política de contenção que as autoridades de então perfilharam: minorar o embate e esperar a quebra da vaga. Não se cometa o grave erro de pensar que se pode vencer um braço de ferro com a Al-Qaeda. É ela que se vencerá.

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