Portugal (versão Chile)
Coerência
Ad Majorem Dei Gloriam
O rearmamento da Europa
Governo - Vamos ao domicílio
São os EUA uma democracia? Breve recensão histórica
«each State shall appoint, in such Manner as the Legislature thereof may direct, a number of Electors, equal to the whole number of Senators and Representatives to which the State may be entitled in the Congress [...]».
«we the People of the United States [...] do ordain and establish this Constitution for the United States of America»,
3. Após o grito de independência, as Colónias rebeldes formaram uma Confederação. No contexto dessa confederação, os Estados foram investidos de um impressionante grau de autonomia. O texto constitucional então em vigor, o Articles of Confederation de 1778, era claro ao estipular que
«each State retains its sovereignty, freedom and independence, and every Power, Jurisdiction and right, which is not by this confederation expressly delegated to the United States, in Congress assembled» (Artigo II).
4. Essa opção não foi, contudo, fruto da existência de um estado de espírito autonomista ou, até, da existência em cada Colónia de valores nacionalistas individualizados. Foi, sim, uma solução adoptada tendo em vista obter sucesso na guerra de independência em curso. É que, em face de uma ausência de poderes centralizados instituídos, havia a clara necessidade de depositar a governação unicamente nos poderes locais já existentes. Assim se explica, aliás, que o Artigo III do mesmo texto disponha que
«the said States hereby severally enter into a firm league of friendship with each other, for their common defence, the security of their Liberties, and their mutual and general welfare, binding themselves to assist each other, against all force offered to, or attacks made upon them, or any of them, on account of religion, sovereignty, trade, or any other pretence whatever».
Nas palavras de Alexander Hamilton,
«there is a wide difference between our situation and that of an empire under one simple form of government, distributed into counties provinces or districts, which have no legislatures but merely magistratical bodies to execute the laws of a common sovereign. [...] In our case, that of an empire composed of confederated states each with a government completely organised within itself, having all the means to draw its subjects to a close dependence on itself -- the danger is directly the reverse. It is that the common sovereign will not have power sufficient to unite the different members together, and direct the common forces to the interest and happiness of the whole» (To James Duane, 03.09.780).
O ponto primordial e superlativo em relação a qualquer outro valor é o da cimentação da União presente e futura. Foi essa a coordenada dada por James Madison quando afimou que
«[...] o objectivo imediato da Constituição federal é garantir a União dos treze Estados primitivos, que sabemos ser praticável; e adicionar-lhe outros Estados que possam surgir no seu próprio seio ou na sua vizinhança, coisa que que não podemos duvidar que também é praticável» (Federalist n.º 14, 30.11.787).
«uma União Firme será da maior importância para a paz e liberdade dos Estados, como uma barreira contra facções e insurreições internas. [...] A Constituição proposta, longe de implicar uma abolição dos governos dos Estados, faz deles partes constituintes da soberania nacional, concedendo-lhes uma representação directa no Senado, e deixa na posse deles certas partes exclusivas e muito importantes do poder soberano. Isto corresponde inteiramente, em todos os significados racionais dos termos, à ideia de um governo federal» (Federalist n.º 9, 21.11.787).
«As this government is formed, there are two sources from which the representation is drawn, though they both ultimately flow from the people. States now exist and others will come into existence; it was thought proper that they should be represented in the general government. But, gentlemen will please to remember, this constitution was not framed merely for the states; it was framed for the PEOPLE also, and the popular branch of the congress, will be the objects of their immediate choice» (James Wilson Replies to Findley, 01.12.787).
«I hold, that in contemplation of universal law, and of the Constitution, the Union of these States is perpetual. Perpetuity is implied, if not expressed, in the fundamental law of all national governments. [...] Descending from these general principles, we find the proposition that, in legal contemplation, the Union is perpetual, confirmed by the history of the Union itself. [...] This country, with its institutions, belongs to the people who inhabit it. Whenever they shall grow weary of the existing government, they can exercise their constitutional right of amending it, or their revolutionary tight to dismember or overthrow it» (First inaugural address, 04.03.861).
Corolário desta ideia é a impossibilidade de um conjunto minoritário de Estados impor a sua vontade à maioria dos Estados. Nas palavras de George Washington, em relação à aprovação da CA,
«is best for the States to unite, or not to unite? [...] If then the Union of the whole is a desirable object, the componant parts must yeld a little in order to accomplish it. Without the latter, the former is unattainable, for again I repeat it, that not a single State nor the minority of the States can force a Constitution on the Majority» (To Bushrod Washington, 10.11.787).
«This sophism derives much -- perhaps the whole -- of its currency, from the assumption, that there is some omnipotent, and sacred supremacy, pertaining to a State -- to each State of our Federal Union. Our States have either more, nor less power, than that reserved to them, in the Union, by the Constitution -- no one of them ever having been a State out of the Union. The original ones passed into the Union even before they cast off their British colonial dependence; and the new ones each came into the Union directly from a condition of dependence, excepting Texas. And even Texas, in its temporary independence, was never designated a State» (Special message to Congress, 04.07.861).
«If one state (however important it may conceive itself to be) or a Minority of them, should suppose that they can dictate a Constitution to the Union (unless they have the power of applying the ultima ratio to good effect) they will find themselves deceived» (To Charles Carter, 27.12.787).
Fenomenologia
Volto a frisar: este fenómeno nada revela sobre os EUA ou sobre Bush, só revela sobre a Europa. É, aliás, de embatucar ver pessoas imbuídas deste estado de espírito a condenar os americanos e W. por... arrogância e unilateralismo!
Seria bom que a vitória de Bush fosse um safanão no ensimesmamento e petulância por cá estabelecidos.
Eleições americanas, a Europa e a nova ordem mundial
1. Os Estados Unidos sempre tiveram relações diferentes com o lado oriental do Atlântico. Muito sucintamente, os primeiros 140 anos de coexistência foram marcados por uma curiosa indiferença. Soltos das amarras coloniais, os Estados Unidos dedicaram-se nesse período à expansão do seu domínio territorial. Melhor dizendo, à expansão e à colonização da Federação no sentido do que é o seu desígnio natural: uma entidade coast to coast. Nessa perspectiva, os Estados Unidos delinearam as suas relações com a Europa em função da aquisição de territórios (Louisiana, Novo México, Califórnia, Alaska) e a ocupação de outros (Filipinas, Porto Rico, Cuba).
Tudo isso mudou em 1914. 1914 foi um prenúncio da nova importância político-económico-militar de uma nova potência emergente. Constituiu um marco, na medida em daí em diante os Estados Unidos passaram a ser um parceiro de jogo ao lado das potências europeias. Eram uma variável não negligenciável.
Em 1941, o mundo mudou para o figurino que, grosso modo, conhecemos até 1989. Os Estados Unidos deixaram de pertencer ao jogo de relações de forças europeu e mundial: passaram a dar o jogo. A supremacia americana revelou-se de ordem demográfica, militar, tecnológica e económica. Em certa medida, até moral. E no rescaldo da IIGG, a Europa passou a ser um corpo político cuja reconstrução e progresso só poderiam ser concebidas (e executadas) debaixo do chapéu-de-chuva americano (Vide Robert Kagan, Paradise and Power).
2. Muito por força do confronto com o bloco soviético, a Europa deparou-se com o seguinte dilema: o continente está devastado e é urgente reconstruí-lo; porém, do outro lado da Cortina surge uma ameça crescente, que sem hesitações aproveitará qualquer momento de fraqueza europeia. A opção natural (instintiva, imediata) foi formar um único bloco com o parceiro americano. Esta parceria (sublinho parceria) foi composta nos seguintes pressupostos e com os seguintes desideratos: (a) a Europa está destruída e precisa de ser reconstruída e protegida; (b) os Estados Unidos têm de fazer face à ameaça soviética de ordem global; (c) o tampão ao expansionismo soviético será a Europa (palco do conflito, portanto), sendo englobada como parte integrante do esforço de guerra americano, assumindo este o papel de defensor do espaço europeu; (d) formando um único bloco aliado, americanos e europeus deverão ter uma visão conjunta e coerente da situação e das opções a tomar.
3. 1989 mudou este cenário de forma radical. Mudaram os pressupostos: a Europa estava já reconstruída e não mais carecia de ser defendida; os Estados Unidos já não tinham um opositor da mesma ordem de grandeza. Consequentemente, deixaram de fazer sentido os objectivos que compunham aquela parceria: os Estados Unidos deixaram tendencialmente (e deixarão cada vez mais) de englobar a Europa como sua zona natural de defesa, ficando esta entidade por sua conta; americanos e europeus deixaram de ter um denominador comum que justificava uma identidade de políticas internas e externas: os interesses podem agora ser abertamente conflituantes. São estes os dados do problema que muita gente não quer ver. É isto que interessa.
4. É neste quadro que se integram as presidências de George Bush, Bill Clinton e George W. Bush. Qualquer um dos três conduziu (com uma ordem crescente de evidência) a política externa americana de acordo unicamente com o melhor interesse americano. Mais: fizeram-no não só em função do melhor interesse americano, como o modus operandi foi definido pelos americanos sem complacência para com as pretensões europeias. Refira-se que a Europa se coloca, clara e deliberadamente, nesta posição. Basta olhar para o conflito nos Balcãs. Foi resolvido pelos americanos, no consulado de Bill Clinton, a pedido da Europa, quando e do modo que se revelou mais vantajoso para os Estados Unidos. E, da mesma forma, entre outros, Bill Clinton bombardeou, sem dar cavaco, o Afeganistão e o Sudão. E já antes, no Golfo, George Bush tinha tratado de Saddam Hussein como bem lhe aprouve.
5. Dito isto, compreende-se a presidência de George W. E decerto se compreenderá que qualquer presidente americano que aí venha não fará diferente. Porque em causa não está a bondade do carácter de fulanos A e B; nem a simpatia que ambos despertam; nem a sensibilidade que um ou outro poderão demonstrar para com certa situação -- como se uma política externa como a americana pudesse ser ditada por tais coordenadas. Em causa estão as variáveis do problema, que são as mesmas: os Estados Unidos são a única potência com capacidade para projectar força, não tendo pejo em fazê-lo quando isso serve os seus interesses. E não há qualquer alteração do enunciado com Kerry.
6. Disse Robert Kagan, na obra acima indicada, que os Estados Unidos vivem num mundo Hobbesiano, ao passo que a Europa vive num mundo Kantiano. Ou seja, para os Estados Unidos as relações internacionais são feitas segundo o critério da lei da força, enquanto que para a Europa existe uma ordem jurídica internacional a que importa obedecer. O problema é que só a Europa vive nesse mundo, e só vive nesse mundo porque durante 50 anos viveu debaixo do tal chapéu-de-chuva americano. Ou seja, como durante 50 anos a Europa foi poupada a qualquer esforço bélico significativo (o trabalho sujo era para os americanos) e como na Europa floresceu o projecto europeu, criou-se uma arreigada convicção de que os conflitos devem ser dirimidos apenas com recurso ao ordenamento. Não é de estranhar que a argumentação europeia vá neste sentido: não tendo qualquer projecção militar, só lhe resta desviar a discussão para um campo onde ainda conte para alguma coisa. E são ilucidativas da incapacidade europeia para ler o presente as afirmações dos seus líderes de que é preciso «construir uma nova ordem mundial». Meus caros, ela já existe. Desde 1989.
7. Óbices: vários. Em primeiro lugar, ao redor da Europa existe um mundo com outros valores: e aí a baioneta conta mesmo. A Europa não tem baioneta; e a Europa manda cada vez menos. Em segundo lugar, o tal ordenamento tão acarinhado pela Europa é disfuncional. Foi concebido para um mundo que já não existe: o mundo da Guerra Fria. As instituições existentes não têm aptidões funcionais para desempenhar os papéis que se lhes entrega; nem têm o suposto carácter democrático que está na base do louvor que lhe é tecido.
8. O que deve, pois, ser o futuro? Em primeiro lugar, importa ter presente que os Estados Unidos são só mais um dos agentes da nova ordem mundial. É certo que partilham os nossos valores culturais e políticos -- e isso não é pouco, nos tempos que correm. Mas é só mais um agente, há outros. Temos de estar preparados para lidar com todos eles nos termos em que eles entendem. Além de sermos vistos como um parceiro económico essencial, temos de nos recolocar como um agente político e militar incontornável. Como sugerem Kagan e Michael Walzer (A Guerra em Debate), a Europa tem algo de muito bom entre as mãos: este mundo Kantiano é, de facto, uma coisa boa. Mais racional; causador de menos sofrimento. Mas não podemos, sob pena de colocarmos em risco o nosso futuro, utilizá-lo com todos os nossos vizinhos: apenas com aqueles que estiverem dispostos a usar essas mesmas regras. Para os demais, teremos de recorrer aos métodos antigos. É um retorno parcial a um mundo que ficou lá bem atrás: é uma espécie de retorno ao jus gentium romano. É este o desafio europeu; é um desafio de mentalidades.
9. Em suma, o resultado das eleições é perfeitamente indiferente para o objectivo europeu de mudar o mundo em que vivemos. Esse, já mudou em 1989. Se o queremos mudar para algo diferente, somos nós que temos de ter essa iniciativa. A bola está do nosso lado. Temos de deixar de ser reacção: temos de passar a ser acção.